Os cafeicultores de Rio Claro seguiam o sistema de exploração do trabalho que prevalecia no restante do Brasil onde havia grandes propriedades e a possibilidade de produzir para exportar. Em 1800, era de escravos um terço da população brasileira, de três milhões de habitantes. A proporção manteve-se na primeira metade do século mediante a importação de mais de um milhão de africanos das possessões portuguesas de Angola e Moçambique. Havia escravos em todas as propriedades; em Rio Claro, eles ocupavam-se de todos os estágios do cultivo, desde a derrubada da florestaà operação da maquinaria de beneficiamento. Até a abolição não havia lavouras de homens livres no municipio; todas dependiam em larga medida e constantemente do trabalho servil a fim de manter a produção. A persistência da escravidão nessa área é de estranhar, pois o apogeu do café no Oeste Paulista ocorreu depois que ela começou a declinar no resto do Brasil. A proibição do tráfico de escravos africanos em 1850 condenara a prática à extinção – a população escrava não se reproduzia. Os cafezistas, portanto, eram obrigados a considerar seu sistema de trabalho como transitório, justificável apenas como um expediente econômico.
Escravos e imigrantes: “Os dois sistemas coexistiram em Rio Claro por cerca de 40 anos nas mesmas lavouras”
Desde o infcio do ciclo do café, os fazendeiros vinham experimentando um sistema de exploração do trabalho que talvez, segundo pensavam, pudesse substituir satisfatoriamente seus decrescentes suprimentos de escravos – trabalhadores europeus contratados. De 1849 em diante, o trabalho assalariado livre, de europeus, foi cada vez mais empregado em Rio Claro, onde fôra introduzido por Vergueiro pouco depois de ter utilizado colonos suiços e alemães em sua fazenda em Limeira. Os dois sistemas coexistiram em Rio Claro por cerca de 40 anos nas mesmas lavouras. Todos os que participavam dessa confusão, inclusive os escravos, tinham consciência de que a escravidão estava no fim e que o trabalho livre era seu sucessor inevitável. Todavia, o número de escravos em Rio Claro continuou a crescer quase até o ano da abolição (Tab. 3.1). Paradoxalmente, o Oeste Paulista, onde o traba- lho assalariado livre alcangou seus melhores resultados é onde os fazendeiros estavam menos comprometidos com a escravidio como sistema social, era também a região que contava com os recursos para comprar escravos de regiões menos prosperas. Esse tráfico interno de escravos atenuava a urgência de encontrar alternativas, provocava nos fazendeiros o temor de perder seus pesados e recentes investimentos, e gradualmente extinguiu a posse de escravos no resto do país. As fazendas do Oeste Paulista foram, portanto, ao mesmo tempo, o setor mais progressista e o mais retrogrado da sociedade brasileira.
TABELA 3.1 – População Escrava de Rio Claro 1822-88
| ANO | NÚMERO DE ESCRAVOS | PERCENTAGEM DA POPULAÇÃO TOTAL | ANO | NÚMERO DE ESCRAVOS | PERCENTAGEM DA POPULAÇÃO TOTAL |
|---|---|---|---|---|---|
| 1822 | 489 | 32,1 | 1882 | 4.852 | – |
| 1835 | 598 | 20,6 | 1883 | 4.866 | – |
| 1856 | 1.426 | – | 1884 | 4.980 | – |
| 1872 | 3.935 | 26,2 | 1885 (junho) | 4.709 | 20,5 |
| 1874 | 4.182 | 1887 (março) | 3.304 | 14,7 | |
| 1875 | 4.429 | – | 1888 (março) | 1.663 | – |
| 1876 | 4.467 | – |

Em 1872, havia 2.496 escravos ocupados integralmente em trabalhos agricolas em Rio Claro, o que representava 55,4 por cento da força de trabalho agricola total (Tab. 3.2). A maioria dos outros escravos em idade de trabalhar ou faziam trabalho doméstico ou eram jornaleiros que possivelmente passavam boa parte do tempo em atividades rurais. Os escravos constituiam 32,8 por cento das pessoas ocupadas parcialmente na agricultura. Havia cerca de 200 escravos que se ocupavam com oficios. Os escravos homens formavam cerca de um terço dos artesãos e se ocupavam de todos os oficios, com exceção da tecelagem e da confecção de sapatos.
É provivel que alguns dos artesãos vivessem nas fazendas, cujos inventários referem-se de vez em quanto a dois ou três como canteiros, carpinteiros, telheiros ou ferreiros, Os outros eram ou aprendizes de artesãos livres da cidade ou simplesmente jornaleiros alugados por seus donos. As escravas não se dedicavam a oficio, com exceção dos trabalhos de agulha, nos quais competiam com mulheres livres num número oito vezes superior. Algumas das escravas das fazendas, ainda que registradas como domésticas, provavelmente costuravam, cuidavam dos doentes ou cozinhavam para o pessoal das plantações. Da lista de 1872 não constava nenhum escravo ocupado em atividade comercial ou não-manual.
Em 1835, quase 90 por cento dos escravos dedicavam-se inteiramente à agricultura, e, dos — outros, apenas 19 não eram jornaleiros ou domésticos – cinco artesãos e 14 arrieiros. Parece, portanto, que havia a tendência a colocar os escravos em ocupações semi-qualificadas, e que essa tendência se acentuava a um ritmo maior do que o do crescimento do núcleo urbano, apesar da escassez de escravos para o trabalho agrícola.
TABELA 3.2 – Ocupações dos escravos de Rio Claro, 1872
| OCUPAÇÃO | MULHERES | HOMENS | TOTAL | PERCENTAGEM DA FORÇA DE TRABALHO ESCRAVA |
|---|---|---|---|---|
| Agricultura | 912 | 1.584 | 2.496 | 76,4 |
| Domésticos, diaristas | 357 | 257 | 584 | 17,4 |
| Ofícios | 65 | 122 | 187 | 6,2 |
| Vestuario | 65 | 17 | 82 | |
| Carpintaria | – | 46 | 46 | |
| Construção | – | 38 | 38 | |
| Metalurgia | – | 12 | 12 | |
| Couros e peles | – | 9 | 9 | |
| TOTAL | 1.304 | 1.963 | 3.267 | 100 |

A lucratividade da escravatura tem sido questionada na historiografia norte-americana, mas não no Brasil. Os fazendeiros paulistas, até o dia da abolição, consideravam vantajosa a utilização de escravos. Os registros de Rio Claro fornecem a base para os cálculos do custo anual da manutenção de um escravo adulto (Tab. 3.3). Os donos não incluíam a depreciação, portanto faziam uma ideia exagerada da rentabilidade dos escravos.
Havia, é bom lembrar, despesas contingentes, tais como prêmios que deviam ser pagos pela captura de fugitivos e a taxa de juro de qualquer empréstimo garantido por um escravo, que aumentava se ele morresse cedo demais. Outros custos de manutenção eram triviais, pois esperava-se que o escravo se arranjasse sozinho. Jamais ocorreu aos fazendeiros que o trabalho livre pudesse ser mais lucralivo simplesmente porque se davam conta do quanto eles podiam explorar os escravos. Enquanto um escravo pagava por sua manutenção com um dia de trabalho por semana, o trabalhador livre, pensavam eles, não renderia ao patrão mais do que um dia de trabalho, mesma com todas as suas facilidades de evicção. Era esse tipo de análise, e não alguma forma de contabilidade de custos, que confirmava nos fazendeiros sua adesão ao trabalho escravo.
TABELA 3.3 – CUSTO ANUAL DE MANUTENÇÃO DE UM ESCRAVO ADULTO EM RIO CLARO, 1857
| Item | Mil-réis |
| Depreciação e juros, custo original de 1500 mil-réis, por 20 anos, 12 por cento do saldo não-depreciado | 165 |
| Taxa de transferência de 5 por cento, amortizada com juro de 12 por cento | 8 |
| Supervisão: um feitor para casa 25 escravos, a 250 mil-réis cada um; um administrador para cada 100 escravos, a 1000 mil-reis cada | 20 |
| Moradia, vestuário, medicamento | 12 |
| Equipamento | 28 |
| TOTAL | 233 |

Enquanto durou o ciclo do açucar, os escravos de Rio Claro eram obtidos das mesmas fontes donde provinha a população livre. Os novos fazendeiros chegavam com escravos herdados dos pais, ou emprestado por parentes, ou talvez transferidos de outras propriedades que possuiam. As compras de escravos eram raras e ocasionais, às vezes apenas de um ou dois ao mesmo tempo; em geral os vendedores eram fazendeiros de outros municípios mais para o interior, onde as perspectivas para a cultura canavieira eram menos promissoras. Até o início do comércio de café, esse processo irregular foi suficiente.
“…hoje, para comprar um escravo, não apenas eles não existem, como os poucos que aparecem no mercado tem um preço excessivo. Os fazendeiros lutam com dificuldades para conservar seus bens”

A mudança brusca para o café em fins da década de 1840 passou a exigir pesados insumos de mão-de-obra para a limpeza de terrenos, o plantio de mudas e a construção de terreiros. Infelizmente para os fazendeiros, esse período critico coincidiu com a real abolição do tráfico de escravos africanos. (Ele fora declarado ilegal em 1831, mas sem efeito algum.) O preço dos escravos triplicou nos 10 anos seguintes — enquanto o nivel geral de preços duplicou (Tab. 3. 4), Os fazendeiros de Rio Claro queixavam-se amargamente. Amador Lacerda Rodrigues Jordão, dono da fazenda de Santa Gertrudes, declarava a Assembléia provincial, em 1857, “hoje, para comprar um escravo, não apenas eles não existem, como os poucos que aparecem no mercado tem um preço excessivo. Os fazendeiros lutam com dificuldades para conservar seus bens”. Num relatário para o presidente da provincia, outro lamentava-se de que “muitos que estão comegando a trabalhar na lavoura … estão desanimados porque percebem que seus recursos são insuficientes para a compra de trabalho escravo. Essa escassez contrastava fortemente com a situação nas plantações do Vale do Paraiba, onde o influxo de escravos se processara em larga escala e aumentara até o tempo da proibição do tráfico.

Os fazendeiros daquela area de certa maneira foram compensados pelo aumento no valor dos estoques de escravos de que dispunham, o que lhes permitia tomar dinheiro emprestado para comprar ainda mais escravos. Também se consolavam com o pensamento de que a falta de escravos atrasaria a competição por parte das novas plantações do Oeste Paulista.
Até meados da década de 1860, o fornecimento de escravos continuou a ser feito pelos municipios vizinhos. Quase todas as vendas registradas pelos cartórios locais referiam-se a lotes de menos de cinco escravos, cujos donos moravam em lugares como Jundiai, Bragança ou Mogi das Cruzes. As novas derrubadas de matas continuavam a absorver os recursos das relações dos fazendeires. Em 1861, por exemplo, a viúva Joaquina Nogueira de Oliveira, cunhada de José Estanislau de Oliveira, firmou um contrato com seu genro, Francisco da Cunha Bueno, proprietário de uma lavoura em Indaiatuba, o qual deveria trazer seus 20 escravos para a fazenda da sogra e administrá-la para ela. Ele deveria, ainda, conseguir outros 20 dentro de um ano, de maneira que o número de escravos dele se igualasse aos dela.
Provavelmente ele conseguiu fazé-lo mediante a venda de sua propriedade em Indaiatuba e a tomada de empréstimos de outros parentes, entre os quais seu irmão Tomaz, o comerciante mais rico de Limeira. Em cinco anos sua situação estava tão boa que ele iniciou uma nova plantação em terras pertencentes a sua mulher, em Itaqueri. Essa mudanca foi descrita pelo historiador Alfredo Ellis, um de seus descendentes, como uma jornada heróica: carroções com a mulher e os filhos, as mulas carregadas com objetos domésticos, e todo o bando de escravos seguindo, a pé, em filas pacientes: e Francisco, dessa vez um patriarca, audazmente estendendo suas plantações para muito além do alcance das tropas de mulas, na esperança de que ali chegariam em breve os trilhos das ferrovias.
Outra maneira de introduzir escravos nas novas propriedades era deixar a plantação e o cuidado dos pés durante os trés a cinco primeiros anos por conta dos empreiteiros, sistema que já descrevemos: assim foram trazidos para Rio Claro mais de 300 escravos. A chegada de escravos ao municipio através de “contratos de locação e a migração de fazendeiros com suas proprias turmas prosseguiu até os anos de 1880. Nesse interim, a transferéncia de escravos por meio de compra assumiu proporções maiores e mudou de caráter. Livros especiais para o registro das vendas de escravo passaram a ser mantidos nos cartorios a partir de 1861.
Desse ano até 1872, a média das vendas era de apenas 1,7, e a maioria dos escravos eram trazidos de municípios vizinhos. O recenseamento de 1872 registrou apenas 463 escravos nascidos em outras provincias, num total de 2.918 brasileiros (Itaqueri não está incluída nesse total). Em geral essas primeiras vendas eram diretas, mas as vezes eram feitas por intermédio de agentes, que frequentemente pareciam ser parentes do comprader ou do vendedor. As vendas regisiradas a partir de 1873 eram maiores – uma média de 3,7 – e quase todos os escravos eram oriundos de outras provincias (Tab. 3.5).
Os vendedores transacionavam através de pessoas que obviamente eram vendedores itinerantes profissionais. Os mais importantes desses agentes eram Antônio José Simões Viana, do Rio de Janeiro, José de Souza Leite Cabral, José Guilherme da Costa Negrão e José Duarte da Costa Negrão, os últimos três, da firma Cabral e Negrão, com sede em Minas Gerais, e sua sucessora, Guilherme, Negrão e Companhia. Eles raramente aluavam por conta propria; em geral vendiam contra uma comisão.

As vezes as vendas eram a crédito, como em março de 1877, quando Manuel Alves d’Oliveira Doria comprou 36 escravos de Rodrigo Marques dos Santos, “comerciante e proprietário de São Luis, da província do Maranhão, por 60700 mil-réis. Doria passou a Santos uma hipoteca sobre os escravos e uma plantação com 90 mil pés de café, devendo pagar o principal em dois anos. Quase todas as outras vendas, porém, eram a vista. Assim, os proprietários locais não se tornaram devedores da elite nordestina.
Os fazendeiros de Rio Claro que não tinham dinheiro hipotecavam sua propriedade a um dos 12 aproximadamente bancos de São Paulo e Rio de Janeiro, ou a algum dos moradores locais que emprestavam dinheiro como atividade secundária. Alguns desses “capitalistas”, principalmente Francisco de Assis Negreiros, um fazendeiro, e Joaquim Teixeira das Neves, comerciante e vendedor de imóveis, também compravam escravos por conta própria como especulação. O volume do comércio de escravos era significativo. Desde o registro geral de escravos em 1874 até 1885, entraram em Rio Claro 1.668 escravos e sairam 897 – o que mostra que Rio Claro era uma espécie de pequena entreposto desse tipo de transação.
O comercio de escravos entre as provincias era resultado inevitável da proibição do tráfico desde a Africa em 1850, bem como da crescente disparidade, de 1830 em diante, nas perspectivas de produção exportável no norte e no sul. O súbito aumento no volume do comércio em Rio Claro deveu-se principalmente a chegada das linhas férreas a Campinas em 1872, mas a promulgação da Lei do Ventre Livre, em setembro de 1871, talvez tenha sido também um fator importante. Essa Lei, que declarava livres todas as crianças nascidas de escravos, a partir de então, obrigava ao proprietário da mãe a alimentar e vestir esses “ingênuos™ até que fizessem oito anos — ou até os 21, se quisesse utilizar seu trabalho até essa data.
Para os proprietários rurais do Nordeste em estagnação e para os moradores de todas as cidades – a posse de escravos adolescentes tornou-se então um risco potencialmente oneroso, de compensação incerta. A manutenção de uma criança escrava em 1870 custava aproximadamente 40 mil-réis por ano, e podia contar-se que apenas a metade dos ingênuos alcançariam os oito anos. As vendas de escravos registradas em Rio Claro a partir de 1872 consistiam na maior parte – é interessante observar — de meninos de 10 a 15 anos. Raramente eles eram acompanhados dos pais, sendo declarados — quase sempre, e provável, falsamente — de mãe desconhecida ou morta.

O preço dos escravos não variava com a cor. Aparentemente, mulatos ou negros eram considerados como equivalentes para o trabalho no campo. Também não se fazia distinção entre africanos e escravos, nascidos no Brasil. As mulheres, em média, eram vendidas por três quartos do preço dos homens. Crianças de dois anos custavam cerca da décima parte de um adulto, e de oito anos, mais ou menos a metade.

Tendo em vista o influxo de escravos de outros municipios ou provincias, os proprietários locais conseguiam contrabalançar o inevitivel envelhecimento da população escrava e manter uma maioria de homens (Tab. 3.6 e 3.7).A tendência no sentido da maior proporgio de escravos brasileiros já se notava mesmo antes da abolição do tráfico da Africa (Tab.3.8).

Isto pode ser atribuido, como o aumento na proporção de mulheres, o aparecimento de um centro urbano, bem como ao crescimento relativamente lento do municipio durante o ciclo do açúcar, que tornara improvével a compra direta de escravos nos portos. As origens dos africanos é muito obscura; apenas os primeiros recenseamentos de 1822 indicavam os pontos de origem, mas esses eram os nomes dos portos africanos, e não das tribos. Quase todos os africanos de Rio Claro eram identificados como provenientes de lugares sob dominio português, ao sul do equador; Congo, Cambinda, Benguela e Moçambique seguiam os nomes de 81 por cento dos 344 africanos anotados.
Em 1835 não foi registrada a proveniência de nenhum dos escravos “de nação”. Em 1880, a origem africana fazia tão pouca diferença para os oficiais de registro da população escrava, ao que parece, que ela não foi indicada — ainda que a proporção de africanos em muitos casos poderia ser embaraçoso, pois havia bastante africanos na província, jovens demais para terem sido trazidos antes da proibição do tráfico em 1831. O fato da entrada ilegal muitas vezes era registrada abertamente em Rio Claro, por volta de 1870, mas na última década da escravatura tais declarações públicas poderiam provocar a tomada de medidas legais por parte dos abolicionistas.

É surpreendente o aparecimento de mulatos escravos no recenseamento de 1872: eles eram quase inexistentes em 1822 a 1835, enquanto o recenscamento mais recente mostrava que mais de um quarto dos escravos eram mistos (Tab. 3. 9). Isso poderia indicar uma nova relutância por parte dos donos em alforriar uma categoria de cativos que parecera particularmente merecedora de libertação, enquanto outras levas de africanos continuavam disponiveis.
No mesmo recenseamento, porém, nota-se uma tendência contrária: pela primeira vez, aparece um grande número de negros livres – 609, ou quase 30 por cento da população livre não-branca. Parece que em 1872, pela primeira vez, os recenseadores fizeram uma distinção entre a escravidão e a etnia. A mudança de percepção de que um homem livre poderia ser um negro, e um mulato um escravo, talvez correspondesse-ao que se pode presumir-a uma mudança na realidade. Também é possivel que ambas as categorias definidas socialmente como escravos negros ou mulatos pudessem incluir, em 1872, pessoas menos negróides, biologicamente, do que antes.
Ocasionalmente um registro de venda ou um inventário anotava um fulo ou um pardo, numa lista em que outros apareciam como mulatos. Eram, provavelmente, quadrarões. Em 125 vendas de 1871 a 1883, onde a cor foi sempre anotada, 12 foram inscritos como fulos, quase 10 por cento. Antes de 1871 nenhum fulo aparecera. É possivel que esse grupo se tivesse beneficiado até então de alguma tendência anterior no sentido de alforriar escravos de ascendência mista. Como um todo, nas duas últimas décadas da escravatura, era menos comum a alforria de mulatos, e quase todo o aumento no número de mulatos livres pode ser atribuido à auto-repredução.
A chegada de escravos de outros municipios e provincias era necessária não apenas porque se expandiam as plantações, mas porque a população escrava não se reproduzia. Isso não se deve à desproporção entre os sexos, a qual – pelo menos nessa região cafeicultora – era resultante do comércio de escravos e não sua causa. A população de imigranies europeus da geração seguinte era ainda mais desproporcional, com maior número de homens.
De 1876 a 1908, nunca houve mais de 25 por cento de mulheres nos contingentes de imigrantes italianos. No entanto, a população de imigrantes proliferou em São Paulo, A proporção de crianças sobreviventes em relação às mulheres em idade fértil era mais do que três vezes maior para as mulheres livres do que para as escravas (Tab. 3.10). A discrepância era ainda maior, na verdade; mostraremos mais adiante que a taxa de mortalidade das escravas era muito superior a das mulheres livres, e o grupo das escravas férteis era originalmente maior. É possivel que a taxa de nascimentos aparentemente mais elevada para as mulheres livres seja atribuível em parte à
alforria de crianças por ocasião do batismo. os registros de batismo — não-disponiveis para o periodo – constituam instrumento legal bastante.

Se metade da aparente diferença nas taxas de nascimento entre mulheres brancas e mulheres de cor livres for devida e alforria dos recem-nascidos, 52 crianças devem ser acrescentadas ao tipo escravo o que uumenta à proporção mas apenas para 60,7.
Pode-se supor que a menor proporção de crianças sobreviventes se devesse principalmente fertilidade mais reduzida. Não há indicações de que em Rio Claro se dificultassem as relações sexuais entre os escravos. Ainda que a separação dos sexos fosse praticada em outros lugures, parece inconcebivel que essa medida pudesse forçar a contingência numa população já tão reprimida em todos os outros sentidos.
Infelizmente não consta dos dados sobre Rio Claro a idade da Primeira concepção, mas à Tab 3.10 parece indicar uma proporção muito alta de contatos sexuais com brancos e mulatos. Entre as crianças escravas havia tantos mulatos quanto negros, ainda que houvesse três e meia mais escravas negras que mulatas. Considerando-se, de fato, uma competição pelos “favores™ das escravas, é possivel que elas mantivessem relações mais frrequentes do que as mulheres livres.
É possivel que os escravos praticassem coitus interruptus. Os casais de escravos talvez procurassem evitar o que ambos deveriam considerar uma desgraça — a concepção de um filho escravo. É possivel também que, pela mesma razão, praticassem infanticídio. É improvável que contatos ocasionais, especialmente com homens livres, implicasse quulquer precaução. O recenseamento de 1822 fornece a oportunidade de medir a fertilidade relativa de mulheres livres e escravas, pois registra todos os nascimentos, inclusive os de natimortos. A ponta 15 crianças nascidas de 114 escravas de 15 a 44 anos, e 38 criancas nascidas de 82 mulheres livres do mesmo grupo etário, portanto, uma taxa de fertilidade de 130 por mil em ambos os grupos.
Ao que parece, menos crianças escravas sobreviviam. Não existem registros preciosos de mortalidade infantil, mesmo na população livre. Havia, porém, notações sobre todos os ingênuos do municipio, incluindo as mortes, a partir de 28 de setembro de 1871. Eles não eram escravos, mas viviam e se alimentavam com estes, e provavelmente recebiam as mesmas incumbências que se fossem cativos. De acordo com à lei de 1871, não poderiam ser separados das mães, e provavelmente não recebiam castigos corporais severos; portanto, sua taxa de mortalidade talvez fosse um pouco inferior do que a da geração anterior de crianças escravas. Até junho de 1886, 2.431 ingênuos foram registrados, inclusive 179 que tinham sido trazidos para o municipio.
Desses, 998 tinham morrido. Presumindo-se uma taxa de natalidade regular para esse periodo de 14 anos e nove meses, a média das mortes foi de 67,6 por ano, ou 55 por mil, o que é comparável a uma taxa por idade específica para uma população na faixa etária de 0-15.
Certamente é, porém, uma taxa muito baixa. O registro das mortes de ingênuos não era tão precioso quanto o dos nascimentos. Ainda que houvesse uma penalidade pela falta de comunicação às autoridades, é evidente que o aviso não era imediato e que nem sempre ele era enviado para compilação. As crianças falecidas no primeiro mês em geral eram registradas, o que era ainda mais grave. Os proprietários tinham 30 dias para comunicar os nascimentos ocorridos de mães escravas: Se uma criança morresse nesse período, o dono não se sentia obrigado a comunicar. A correspondência do municipio contém inquéritos policiais referentes a alegadas faltas de registro de ingênuos. Quando o dono respondia que a criança falecera, a questão era invariavelmente arquivada. Supondo-se que apenas um quarto dos natimortos fossem anotados, e que a morte dos bebês representasse 60 por cento de todas as mortes de ingênuos nessa faixa até os 15 anos, então haveria 125 mortos por mil, para todo o grupo, e à mortalidade dos bebês alcançaria 470 por mil.
Seria de objetar-se que uma taxa de mortalidade tão elevada não deixaria de ser observada pelos donos, que certamente tomariam medidas para impedi-la. Na verdade eles tinham consciência desse fato, mas não o atribuiam às condições letais dos quadrados. As recordações de infância na fazenda escritas por Maria Paes de Barros contém reconstituições fiéis de auto justificativas dos donos de escravos. Ela se lembra da mãe, esposa do proprietário da fazenda de Santo Antônio, censurando as escravas por terem permitido que os filhos morressem, na noção de que elas eram descuidadas e negligentes e não tinham alimentado direito as crianças. As mães, então, eram obrigadas à pedir perdão e prometer agir mais corretamente na próxima gravidez! Dessa maneira, o holocausto perpétuo dos bebês escravos era explicado como mais um sinal da incapacidade dos escravos, que os fazendeiros benevolentes, mas desalentados não conseguiam superar.
Cabe notar que o trabalho nas plantações de café não era, por natureza, tão exaustivo quanto o da maioria das outras grandes lavouras. À tarefa mais cansativa era a incessante limpeza do solo, feita com enxadas. Esse era um trabalho para eitos de escravos, supervisionados pelos feitores, que às vezes também o eram, e mantinham a disciplina principalmente através de insultos e ameaças, com o chicote como último recurso. Os fazendeiros quase sempre não punham pessoal suficiente nas lavouras, e portanto exigiam o máximo do trabalho de enxada do seu pessoal, eliminando o tempo de folga para o atendimento das atividades de subsistência. O cultivo de milho e feijão, que constituiam os principais alimentos, era feito em áreas extensas, e não lotes individuais, ao que parece. Estes campos eram trabalhados por jornaleiros e por escravos. O trabalho era de sol a sol, e mesmo depois de escurecer, na época da safra. Havia um dia de descanso. Esse era um regime muito mais duro do que qualquer homem livre de Rio Claro havia experimentado, e era inteiramente não-remunerado. Nenhum incentivo era oferecido, afora o descanso da chibata, e ser promovido significava ter de aplicá-la aos companheiros.
Os escravos eram alojados em longos barracões, as senzalas, alinhadas para formar quadrados inteiramente fechados, circundando uma praga cujo único ornamento era o pelourinho. Os quadrados, de acordo com um visitante da Fazenda Ibicaba, por volta de 1880, eram imundos, enfumagados e sem mobiliário. Os escravos alimentavam-se de uma lavagem de milho ou feijão, servida em cuias. Ao acordar recebiam café adoçado com açucar mascavo. No inverno as vezes se servia também uma medida de aguardente, com exceção do toucinho a carne era rara. O desvio de recursos em dinheiro ou pessoal para alimentar os escravos deveria ser feito com a maior avareza. Não é possivel avaliar se a ingestão de calorias por parte dos escravos era inferior a dos trabalhadores livres, ou mesmo dos pequenos proprietários. É certo, porém, que sua dieta continha menos proteínas e, provavelmente – como era menos variada, menos vitaminas e minerais.
O estilo dos contatos entre escravos e fazendeiros lembrava o dos senhores e camponeses. Ao amanhecer, antes de se dirigirem para os campos, reuniam-se sob a janela do dono, tiravam os chapéus e dobravam ligeiramente os joelhos, para receber sua bênção. O fazendeiro dava audiéncias nas quais se distribuiam os castigos e os favores. A chegada do fazendeiro e família era marcada pela distribuição de um novo suprimento de tecido e cobertores, e, as vezes, presentes individuais de fitas, fivelas e coisas semelhantes. Os escravos, na fazenda Ibicaba, tinham de participar das festividades organizadas por Vergueiro. Um visitante testemunhou, em 1884, uma procissão de escravos conduzindo tochas, precedidos por uma banda, com estandartes, um crucifixo, fogos de artificio e disparos de um canhão. Isso constituiu para ele um “estranho espetáculo”.
“Não havia contentamento. Não percebi um único sinal de alegria, ao contrário. O ar estava frio, quase gelado,e quando afinal a procissão retornou e tomou a direção do pátio dos escravos, pequenas fogueiras foram acesas em diferentes pontos para aquecer. Enquanto eu olhava esta cena de uma janela, ouvi o portão bater e o pesado ferrotho ser fechado depois que toda a procissão passara, e um pensamento triste me atingiu como um raio, de que essa gente era como prisioneiros”
No dia seguinte ouviu uma missa para os escravos na capela, celebrada pelo padre italiano de Rio Claro. A cerimônia levou apenas 20 minutos, enquanto os presentes, a maioria mulheres, ajoelhadas no chão, cantavam melancolicamente, “com uma expressão triste em cada face”.
A escravatura exigia a incapacidade legal, nem poderia ser outra maneira. Como o escravo era um cativo, a contraditória implicação legal de que ele possuía uma personalidade não tinha efeito. O que para outros constituia um castigo para ele muitas vezes era um prêmio. Ainda que para os moços do municipio o recrutamento militar fosse algo aterrador, para o escravo era um ensejo feliz, mesmo durante a Guerra do Paraguai. Ainda que a cadeia da provincia fosse desoladora e anti-higiênica, raramente os escravos eram para lá enviados, para que esse regime relativamente benigno não incentivasse outros escravos a atos criminosos. Havia toque de recolher para o escravo – que não poderia aparecer na cidade a noite sob hipótese alguma, sendo invariavelmente detido até o amanhecer. Com frequência usava uma coleira de metal para identifica-lo. Não recebia instrução, não tinha escolha – onde morar, se trabalharia ou não, do que comeria ou vestiria. Seu dono podia vendé-lo, alugá-lo, hipotecá-lo. Encontrava-se sujeito a afrontas e atos criminosos considerados legais, poderia ser enganado, violentado e maltratado impunemente, e o normalmente.
Não é necessário, para condenar a escravatura, invocar atrocidades que mesmo na época eram consideradas criminosas e, às vezes, denunciadas. Havia muitas, porém, e silenciá-las seria distorcer esta narrativa, pois, ainda que aparentemente fortuitas, elas poderiam passar sem castigo, na estrutura legal e social da escravidão. Quase nunca se comunicavam assassinatos de escravos por seus donos. Segundo o agente suíço J. J. von Tschudi, em 1857 somente dois tinham sido descobertos em seis meses, em toda a província, Ele imaginava que esses dois tivessem sido denunciados porque os fazendeiros assassinos tinham inimigos pessoais que procuravam causar-lhes embaraços públicos. Evidentemente apenas em circunstâncias extraordinárias o assassinato de um escravo seria trazido a luz. Não era hábito dos delegados de polícia abrirem inquéritos, ou dos jornais das pequenas cidades publicarem acusações. Os assassinatos de escravos eram seguidamente disfarçados de suicidio. Comumente eram ignoradas as acusações voluntárias que chegavam a policia.
Em 1876, Luiz Gama, um advogado de São Paulo, ele mesmo um mulato liberto, conhecido como defensor dos escravos, encaminhou uma carta ao chefe de policia da provincia, que não tomou providéncias:
Se o chefe de polícia tivesse sciencia dos actos deshumanos e horrorosos q’practica certa classe de gente pr estes sertões, pr certo q’daria urgentes providencias, visto q’ as victimas d’estas barbaridad’, além da desgraça os persegue pr se chamarem escravo; ainda sofrem castigos tão barbaros, a ponto de sucumbirem. Um farendeiro de S. Carlos do Pinhal [o municipio que limita Rio Claro ao norte], de nome José Estevão de Torres, e um d’aqueles q’ se pode chamar hamtropophagos, visto que os infelizes q’ cahem em seu poder tem diminuido a vigesima parte & menos do q’ poderia viver, p™ esse curto espaço que resta, p” certo elles darião de boa vontade pr’ ficarião livres da furia d’aquelle algoz. Fiz chegar estes factos ao conhecimento de uma pessia intelligente e humana, lembrei-me de VS. q está mtº no caso de socorrer aquelles desgraados chegando aos ouvidos do chefe de policia. Não pretendo assignar-me n’esta carta, não pr q’ não posso provar o q acima vai dicto, mas só e unicamente pr q’ infelizmente moro entre estes perversos de forma humana.
Luiz Gama, 1876
O assassino impiedoso de escravos parecia, num sentido radical, disfuncional no próprio sistema. De fato, Luiz Gama comentava em carta anexa à transcrita, não desconhecer “a necessidade de rigores…para manter-se huã monstruosidade legal”, mas que não poderia jamais attingir até o assasinato”. Nada havia no sistema, porém, que impedisse essas ocorrências, e muito que as encorajasse.
Para algumas pessoas, indubitavelmente, a instituição da escravatura era uma licença para a satisfação dos desejos, fossem eles quais fossem. A capanga do barão de Grão-Mogol, um negro liberto baiano que continuou a viver na casa-grande da fazenda muito depois da morte do barão e da partilha de suas propricdades, deixava atônita a família de imigrantes que cuidava dele em seus últimos anos, com as histórias das orgias sádicas presididas pelo barão no seu porão, tendo como convidados todos distintos membros da elite local, e as escravas do barão, acorrentadas a postes e grades, como piéce de résistance. (Declaração feita pelo Sr. Pedro Rosi e Senhora, em Rio Claro, em 13 de dezembro de 1968. O bar[ao, sob o falso pretexto de que sua mulher era demente, mantinha-a presa no sotão. Todavia ele gozava de boa posição no municipio e foi presidente da Câmara Municipal)
Até a última década da escravidão, além das vinganças entre membros da elite, só havia uma circunstância em que a violência contra escravos era notada: era quando um deles reagia violentamente, fora dos limites da fazenda. São conservados em Rio Claro as atas de dois julgamentos na década de 1860, de escravos que, aterrorizados diante das ameças de espancamento, preferiram atacar seus guardas a voltar a fazenda. Num dos casos o escravo fugira e estava sendo trazido para seu dono, Rita Benedita de Camargo, quando escapou numa via pública e feriu seu captor com a própria faca deste. Ao ser preso, contou a polícia que já tinha recebido chicotadas e lhe tinham prometido mais. Noutro caso, um escravo chamado Tolentino fora vendido aos herdeiros de J. E. Pacheco Jordão, em cujas fazendas, segundo o testemunho de um policial, “se castiga e maltrata muito os escravos”. Desesperado e assustado, Tolentino decidiu atacar o capataz escravo que conduziia a eito para a fazenda, na esperança de que o dono não quisesse aceitá-lo, por ser desordeiro. Infelizmente, calculou mal e acabou matando o capataz, sendo capturado pelo restante dos escravos, temerosos de serem punidos como cúmplices. O primeiro escravo foi condenado a 200 chicotadas, o segundo, a 400.
Espancamentos, e mesmo mortes, ocorridos dentro das lavouras, não chegavam ao conhecimento das autoridades. Os escravos eram enterrados nas fazendas, e não se exigiam atestados de óbitos até 1875, quando entrou em vigor uma lei que os requeria para toda a população. Mesmo depois, na verdade, só o que era preciso era um médico amigo, talvez parente do dono. As vezes, contudo, ocorria alguma violência longe da plantação, e era necessário fazé-la parecer acidental. Um jornal local publicou esta curiosa noticia sobre a morte de uma escrava em 1880:
Desastre ou suicidio? – A preta Marcellina, escrava de D. Gertrudes Thereza Ferraz de Andrade, seguia para sua farenda em companhia de uma outra pessoa que a conduzia presa. Por um pequeno descuido conseguiu evadir-se a dita escrava, e três dias depois foi encontrado o seu cadáver na estrada de Piracicaba. Tendo conhecimento do facto a autoridade mandou proceder ao competente auto do corpo de delicto, verificando-se então que a sua morte fora devida ao tiro de uma espingarda, encontrada ao pé do cadáver, sendo o ferimento recebido no centro da região epigastrica de baixo para cima. Devido a esta circunstância de ferimento ignora-se se a escrava foid victima de um descuido inconciente, levando o pé esquerdo ao gatilho da espingarda; ou se pelo contrário tomou a resolução de por termo a sua existencia.
O jornal não explicava como a escrava conseguira apossar-se de uma espingarda, ou a quem ela poderia ter pertencido, nem comentou sobre a estranha escolha do local. Note-se ainda que o nome do captor não foi mencionado.
Em outra oportunidade, o escravo sobreviveu e testemunhou contra os seus atacantes. Um escravo chamado Fausto, pertecente a José Vergueiro, foi examinado pela policia por “diversos ferimentos”. Outro escravo informou-lhes que Fausto, como outros escravos, estava acostumado a trabalhar para outros fazendeiros no seu dia de folga. Fora a plantação de João Lopes cobrar 6 mil-réis que lhe eram devidos. Lopes e seus capangas, em vez de pagar-lhe, espancaram-no, deixando-o inconsciente nos trilhos da Paulista. O maquinista viu-o em tempo, devolvendo-o ao seu dono. A policia colheu os depoimentos de gente de Lopes, no sentido de que Fausto nunca trabalhara ali, e de um empregado da Paulista, segundo o qual Fausto declarara que de dejava suicidar-se e que os ferimentos tinham sido causados pelo limpa-trithos – chegara bem perto, realmente. A policia aceitou esta versão, ignorando o depoimento de outro escravo de que o empregador de Fausto chamava-se Manuel Lopes, não João – e deu o caso por encerrado. Esta investigação fora conduzida a pedido de Vergueiro, que não devia ter gostado da maneira de tratarem o seu escravo. É possivel que não tenha levado a questão adiante para não constranger outro fazendeiro; ou simplesmente por não aprovar a prática do trabalho livre nos dias de descanso, considerando o caso um bom exemplo para o resto dos escravos.
Se Fausto tivesse sido atacado pelo proprio dono, não teria havido razão para fazer com que tudo parecesse acidental, pois a policia nesse caso não se teria interessado pelo caso. Em maio de 1886, Amaro, um escravo de João Evangelista de Toledo, cuja fazenda ficava no vizinho São Carlos, fugiu e foi até o chefe da policia em São Paulo pois temia ser chicoteado até a morte. O caso estava dentro da jurisdição do chefe de policia, pois as leis brasileiras proibiam crueldade desnecessária. Os escravos, todavia, não podiam legalmente servir de testemunha contra os seus donos, e a policia achava-se incapacitada para proceder a investigações que, é fácil imaginar, não chegariam a um fim e seriam consideradas insultuosas aos proprietários de terras. Observe. se que Amaro não apresentou sua queixa ao delegado de policia local, o qual, segundo ele poderia muito bem imaginar, não teria suficiente força para agir. De qualquer modo, Amaro também não encontrou ajuda na capital, foi encarcerado como qualguer fugitivo, e notificou-se Toledo da sua captura, seis dias mais tarde este apresentou-se no quartel de policia e declarou nunca ter punido Amaro com excesso de severidade e que “jamais dera ordem a seu feitor para castigar barbaramente e muito menos fosse ele morto no caso em se revoltasse contra semelhantes castigos”. O chefe mandou Amaro de volta sem outras formalidades.
Os escravos em Rio Claro suportavam diariamente um regime de trabalho incessante e condições de vida aviltantes; em algumas fazendas eram submetidos a crueldades ocasionalmente, noutras, freguentemente. Sua sorte ndo preocupava o restante da população. Comprovou-se que em outras partes do Brasil os fazendeiros procuraram – pelo menos até certo ponto — substituir as ameaças e violência pelo dominio e manipulação patriarcais. Sua intenção, aparentemente, era economizar despesas administrativas e reduzir riscos para suas pessoas e propriedades, e, talvez, até mesmo atenuar a situação dos escravos e colocá-los numa condição de servos, em épocas nas quais o declínio dos preços de exportação tornava antieconômica a aquisição de mais escravos. E também provável que os fazendeiros não fossem inteiramente calculistas; eram burgueses imperfeitos que ocasionalmente confessavam aspirações de natureza muito tradicional: possuir servos que se entregassem a suas intermináveis tarefas alegremente, em troca de proteção, benevolência e estabilidade.
Em Rio Claro havia indicações de certa indistinção entre agregados, frequentemente mulatos e as vezes negros, e escravos que ocupavam posições especiais: arrieiros, capangas. Estes últimos eram especialmente interessantes, por serem utilizados contra agregados, fugitivos e até outros proprietários, Mais surpreendentemente foi o uso, por Nicolau Vergueiro, de um escravo como administrador da fazenda Ibicaba por volta de 1830, ainda que Vergueiro se ausentasse seguidamente da plantação, esses escravos sem divida gozavam de maior poder sobre seus companheiros, o que constituía em si mesmo um prêmio, um incentivo e manutenção da disciplina e uma barreira a impedir a coesão social entre escravos. Há indicios, todavia, de que as vezes esse escravos especiais eram recompensados de acordo com o que os agregados livres consideravam prestigioso. Os escravos supervisores, como pode ser verificado pelos primeiros recenseamentos, eram em geral mais velhos. Talvez durassem mais simplesmente por serem guias de mulas, mas é mais provivel que os donos reconhecessem a antiguidade dentro do grupo. Com maior frequência, também, eles eram casados. A possibilidade de contrair uma relação estável teria um efeito distinto da alternativa de poder ter acesso indiscriminado das mulheres do eito. Em termos praticos, diminuiria o controle do supervisor sobre o grupo, mas incentivaria a emulação. O que é mais interessante, a familia nuclear deve ter sido um forte motivo para a ocasional conquista da estabilidade sob a forma de contratos anuais, o que permitia a alguns libertos ultrapassar a condição de servo e juntar-se aos imigrantes na transformação do regime das grandes lavouras na década de 1880.
(O pai de Paes de Barros comentou certa vez a respeito de um escruvo insubordinado: “E preciso casar esse negro e dar-lhe um pedaço de terra para assentar a vida e tomar juizo”, PAES DE BARROS, Maria — No tempo de dantes, São Paulo, Brasiliense, 1946, p. 76)
A alforria, considerada com frequência sinal de uma tendência liberal no regime escravagista brasileiro, era – pelo menos em Rio Claro – uma evidente expressão de controle paternalista. A fórmula das cartas de liberdade designavam o ato como uma “graça’ que o escravo merecera por sua “grande lealdade™ e “obediência”. Só foram encontrados registros de nove alforrias imediatas e incondicionais em Rio Claro, até 1888, quase todas as cartas anteriores a 1880 traziam como condição a morte do dono. Uma carta de 1857, por exemplo, escrita por Ana Veloso de Anhaia em seu leito de enferma, concedia liberdade a uma escrava chamada Catarina, com a disposição, porém de que, se Ana Veloso ficasse boa, o ato seria revogado! (Uma curiosa tentativa de ganhar o céu, que lembra um testamento descoberto na cidade litorânea de Ubatuba onde se estipulava a venda de um escravo para pagar as missas a serem rezadas pelo descanso da alma do falecido.)
Enquanto os donos permacessem vivos, o escravo era obrigado a fornecer seus serviços “sempre com amor e carinho”. Um escravo liberto nessas condições era legalmente uma espécie de tutelado, livre, mas sem poder gozar da liberdade. De 1846 a 1856, 43 escravos receberam esta espécie condicional de liberdade, menos de quatro por ano. Desses, sete eram crianças, 22 eram homens e 14 mulheres. A maioria parecia ser empregado doméstico ou artesão. Apenas três eram africanos. No recenseamento de 1872, apenas 18 dos 695 africanos de Rio Claro eram livres! Quase todos os negros e mulatos livres do municipio, conclui-se, eram fruto do crescimento natural, e não da alforria.
A possibilidade de se revogar a liberdade era bastante real, A lei o permitia, até 1871, e as cartas às vezes o ameaçavam, se o liberto se tornasse “ingrato”, desprezando tal prova de estima e recusando-se a prestar serviços ao antigo dono, ou se comportando de maneira a se mostrar pouco merecedor de tal graça. Os cartorios conservam alguns termos de revogação em Rio Claro, Um, datado de 1857, é uma maldição que enche duas páginas de fúria e lése majesté.
A dona, Mariana Cândida das Neves, concedera liberdade a Marcelina quatro anos antes, condicionada a sua morte, mas queixava-se agora que “acontecendo porém que a mesma escrava tem deixado de cumprir com as condições determinadas na mesma carta de alforria e até se tem tornado muito ingrata com a doadora de sua liberdade, por isso a mesma senhora [ está] arrependida de a ter libertado”.
Imagine-se a cena no cartório, para onde a escrava certamente foi trazida, a fim de ser esmagada pela cerimônia — quatro anos de humilhação e subserviência perdidos diante dos ensalmos ditados pelo ódio de uma mulher perversa: “e como revogada ficar a dita carta de alforria de hoje para sempre, a fim de que desde já fique em cativeiro, como se livre nunca fora, come captiva torna a ser por virtude deste meu escripto, porque a carta de alforria que libertou a mesma escrava fica sem nenhum efeito… e quero que este meu escripto sirva de prova.”
Mesmo a sorte de Marcelina é evidência de paternalismo, pois apenas uma interação psicológica real poderia ter provocado tal tempestade de ressentimento. Marcelina, de uma ou outra maneira, estivera proxima a sua dona. Todavia, essa espécie de relacionamento parece ter-se confinado a um pequeno segmento da população escrava de Rio Claro. A decadência da escravidão no Oeste Paulista não engendrou nem servos nem senhores. O problema crucial era criar uma classe subalterna que trabalhasse tanto quanto os escravos: o aumento no número dos rendeiros agregados não seria a resposta. Além disso, enquanto cada escravo trouxesse a recordação do que fora pago por ele, haveria a forte tentação de tratá-lo como a uma pega de mercadoria, e não a um servidor fiel.
Em 1857, por exemplo, João Joaquim Lopes de Figueiredo Brasil não recebeu de herança do seu pai mais que dois velhos escravos. Estes, no mesmo testamento, tinham recebido 100 mil-réis. João Joaquim, então, lavrou no cartório uma carta de liberdade em favor dos escravos e embolsou o dinheiro, declarando que evidentemente à intenção de seu pai fora que os escravos usassem o dinheiro para alforriar-se. Esta transação claramente solerte permitiu ainda ao filho livrar-se da despesa de manter dois velhos que já não poderiam produzir qualquer rendimento. (Teria sido esse mesmo João Lopes aquele cujos capangas espancaram Fausto 27 anos mais tarde? Em caso afirmativo, observa-se o momento da acumulação primitiva. Como Balzac teria adorado!)
Outro termo de revogação exemplifica o interesse egoista suplantando a obrigação paternalista, ainda que o dono tentasse justificar-se dos dois lados. Em 1848, Salvador Pires Pimentel declarou ao escrivão que se via forçado a cancelar um documento regisirado 10 anos antes em Bragança em favor de um moço chamado Manuel, que se cumpriria após a morte do dono, porque “as suas [de Salvador| condições tinham mudado inteiramente, de maneira que ele já não podia conceder esse favor, pois devia grandes somas e desejava pagar logo suas dividas, o que não poderia fazer se não vendesse o mulatinho, e além disso ele já não merecia essa graça, por ter dado motivo a contrariedades.
O costume, frequentemente registrado, de dar crianças escravas como presente, parece, à primeira vista, indicar uma espécie de paternalismo: uma mulher de recursos, “desejando dar uma sincera demonstração de estima & amizade”, enfeitaria a filha ou filho pouco promissores de alguma escrava, e enviaria a criança para o outro lado do municipio, para a casa de uma neta ou sobrinha recém-casada. As vezes se registrava no termo de doação que a escrava valia tantos milréis, uma maneira de mostrar o preço do presente, sem dúvida, o que era sempre calculado com exagero, o presente talvez fosse bem intencionado e bem recebido; a criança poderia ser mimada e protegida. No entanto, que horror ver uma menina tratada exatamente como se fosse
uma boneca de corda; e enquanto na sala as insipidas senhoras, aos gritinhos, trocavam os costumeiros gracejos (como as apresentadoras gorduchas da televisão paulista) sobre a menina de cinco anos, presente de aniversario de carne e osso, na cozinha, como faria a mãe, para sufocar a dor da separação?
Os maridos dessas damas, por sua vez, não mostravam à menor tendência a reconhecer os filhos que tinham com as mulheres escravas. A proporção de crianças mulatas em relação às escravas, constanie na Tab. 3.10, representa forte indicação de que os brancos tinham frequentes relações com as escravas. Se não houvesse contatos sexuais entre escravas e homens livres, e se todos os contatos com escravos livessem sido aleatórios, então menos de 5 por cento das 555 criangas escravas — apenas 27 = teriam sido consideradas evidentemente mulatas pelos recenseadores. Todavia, entre as numerosas declarações de paternidade registradas em cartório por homens livres, apenas uma em 42 anos – referia-se abertamente à legitimação de uma criança escrava.
Os proprietários de Rio Claro, por outro lado, reconheciam facilmente suas ligações com mulheres livres, mesmo as extramaritais, a esse único caso de generosidade deveriam ser somados a meia dúzia de outros em que as escravas foram libertadas juntamente com os filhos, porém, uma forma alternativa de reconhecimento, talvez, que não oferecia, porém, o perigo presente nas declarações de paternidade: o direito à herança.
Ainda que não existia registro local desse fato, diz-se que o barão de Grão-Mogol reconheceu 15 de seus filhos de escravas, todos os quais partilharam de sua herança, a plantação Angélica. Não se encontrou nenhum outro caso semelhante.
(RC/C-2, Livros de Notas, 18 jun, 1866: Francisco Franco de Arrudn, solteiro, reconheceu seu filho, João, de dois meses e meio, “de uma escrava mulata chamada Dominiana™, e concedeu-lhe liberdade. A respeito do barão, una entrevista com Oscar de Arruda Penteado, em 27 out. 1968, VIOTTI DA COSTA, Emilia — Da senzala a colonia, p, 272, fornece indicações contra a afirmativa de que o alforria de filhos fosse comum, F. J. de Oliveira Viana, penetrante analista da sociedade brasileira, apesar de defensor infatigável da elite dos proprietários rurais, usou de lirismo para descrever os fazendeiros como “garanhões fogosos da negralhada”, em Populações meridionais do Brasil, 31 ed., São Paulo, Companhia Editora Nacional, 1933, p, 1-86)
A permanência dos escravos nos trabalhos de campo tem sido estimada entre sete e 15 anos, o que não significa nada sem um conhecimento da faixa de idade dos mesmos. Os recenseamentos de 1822 1835 dão ensejo ao cálculo da sobrevivênca do escravo e, indiretamente, de sua expectativa de vida. Em Rio Claro houve dez propriedades que permaneceram nas mãos das mesmas pessoas, por ocasião de ambos 65 recenseamentos. Dos 131 escravos constantes do primeiro, 38 ou 29 por cento estavam presentes 13 anos mais tarde (Tab 3; 11).

Possivelmente quase todos os escravos que não constavam da última relação tinham morrido. Escravos fugidos seriam anotados como estando presentes, mesmo muitos anos após o desaparecimento. Não parece que algum tivesse sido alforriado. Os nomes dos escravos da primeira lista foram procurados entre os dos agregados ou jornaleiros da segunda, mas nenhum foi localizado. É possível que os libertos não gostassem de permanecer num municipio onde tivessem sido escravos, mas havia poucos libertos em Rio Claro que tinham migrado de outros lugares apenas sete em 1835 puderam ser claramente assim identificados. Nenhum dos fazendeiros da Tab. 3.11 possuia plantações mais para o sertão, para onde os escravos pudessem ter sido transferidos, ou tinha filhos que tivessem estabelecido fazenda propria nesse interim. Apenas um, Pedro Vaz de Campos, declarou uma diminuição no tamanho de seu eito de escravos, levando a crer que, talvez em dificuldade, tivesse precisado vender alguns. Mesmo assim. uma epidemia poderia ter causado o desaparecimento, e a morte de uma grande parte dos escravos teria sido razão importante para uma falência e a necessidade de vender o resto.
Mesmo se não levarmos em consideração os escravos de Vaz de Campos, apenas 36 por cento do restante sobreviveu 13 anos. A idade média desse grupo era 23 anos. Não é possivel fazer a conversão para a expectativa de vida, pois as idades são muito variadas dentro do grupo e de qualquer maneira, elas não eram declaradas com precisão. Uma comparação com a tabela de vida de Arriaga, baseada no recenseamento de 1872, seria interessante, contudo em 1872, 76 por cento dos homens com 23 anos sobreviveriam nos proximos 13 anos, e sua expectativa de vida era calculada como sendo 29 anos, i. e., até os 52. Aparentemente, a expectativa de vida desse grupo era de menos da metade desse número.
Nessa amostra não havia diferença significativa nas taxas de sobrevida de mulatos e negros, de casados e solteiros, de mulheres e homens. As idades dos que sobreviveram eram em média quatro anos inferiores às dos que não o fizeram, e todos esses dados podem ser tomados como medida da validade da inferência de que os escravos ausentes tinham morrido. Das crianças do grupo, apenas quatro entre as 10 com cinco anos ou menos, e nenhuma das sete entre seis e 13 sobreviveram, e que parece indicar uma mortalidade mais elevada do que a dos ingênuos, já observada. Nesse caso se ressalta a falta de lucratividade da reprodução dos escravos.
Em Rio Claro, em 1822 e 1835, mais da terça parte dos escravos adultos foram anotados como casados (Tab 3. 12). O aparente declinio acentuado em 1872 provavelmente deveu-se a uma definição juridica de “casamento”, pois também houve uma forte queda na proporção de adultos livres anotados como casados. Supondo-se uma redução de cerca de 10 por cento na proporção real de escravos casados (estimativa que explicaremos mais adiante), pode-se inferir proximadamente que um casal escravo em cada quatro tinham casado na igreja, em comparação a dois entre três casais livres. Uns poucos escravos eram casados com pessoas livres — quatro homens e duas mulheres em 1822, e um homem em 1835, isso resultara provavelmente de um dos parceiros ter obtido a liberdade depois de tomar um companheiro. Numa casa, no recenseamento de 1822, duas esposas livres constavam da lista de escravos! O tamanho do grupo de escravos influia na incidência de casamentos. Os escravos das turmas menores e das maiores eram casados mais comumente.

Os casamentos entre escravos refletiam os da população livre, monogâmica é dominada pelos homens: era mais comum que o homem mais velho e em melhor posição fosse casado, e em geral a companheira era mais jovem. Parece que os escravos brasileiros casavam mais que os africanos. Os homens nascidos no Brasil eram casados com mais frequência, e em geral casavam com brasileiras. Entre os africanos, não havia a tendência a casar com pessoas registradas como oriundas do mesmo porto de embarque. Os escravos talvez conseguissem ganhos marginais através do casamento, mas não conseguiam absolutamente reproduzir a situação familiar da população livre.
O homem não fazia parte de um grupo de parentesco mais amplo; não detinha um nome de familia e muito raramente um segundo nome de batismo. Seu lugar de nascimento não era próximo. Como o escravo era mais oprimido e controlado do que o agregado, seu dominio sobre a familia era ainda mais precário. É visivel que a agressão sexual dos homens livres não se limitava às escravas solteiras. Nos dois primeiros recenseamentos havia oito fazendas onde se registrou a presença de crianças mulatas, apesar de que todas as escravas que poderiam ser as mães eram anotadas como casadas. Uma das plantações era de Nicolau Vergueiro, onde havia sete criangas mulatas, em 1822. Em 1877 a escrava Joana foi acusada de envenenar o esposo com vidro moido sua defesa foi de que a substância lhe fora dada por um feitor, Manuel Gomes, com o qual ela tinha relações sexuais, mas que ela não sabia tratar-se de veneno, Gomes fugira convencendo os jurados da verdade do depoimento de Joana. Em outras ocasiões as queixas de maridos escravos provavelmente eram silenciadas com menor pertubação da ordem nas fazendas.
As crianças escravas com frequência eram afastadas dos pais e vendidas. Os livros de escravos mostram que eles eram separados das mães depois dos oito anos, quando já se mostravam capazes de executar algum trabalho. Um exemplo apavorante foi a venda, em 1878, por Francisco Gomes Botão, de duas crianças, de oito e 11 anos, filhos de um casal liberto! A separação de membros de um casal sem dúvida explica a presença anômala de pessoas “casadas” sem conjuges, nos recenseamentos. A Tab. 3.12 não revela o número verdadeiro dessas separações forçadas.
Em 1835 havia 12 homens casados e cinco mulheres casadas, mas sem conjuges, ou seja, 4 por cento dos adultos. Em 1872 o número de casados sem mulheres aumentara – um em cada quatro maridos escravos aparentemente não tinha esposa. A população livre também exibia o mesmo fenômeno, mas não no mesmo grau – um em cada nove maridos livres não tinha esposa — evidentemenie devido ao fluxo de homens que seguiam sozinhos para as novas rotas de exploração agricola. Escravos cuja separação fora prolongada, tendo passado, talvez, pelas mãos de agentes, provavelmente não eram anotados como casados; dai que até certo ponto, o aparente declinio na proporção de homens casados talvez fosse real. Para a provincia como um todo, inclusive áreas estranhas à zona do café, a proporção de adultos casados em 1872 era de 19 por cento. O rápido crescimento da cafeicultura estava causando, como se vê, deslocamentos da população escrava que diminuiam as suas oportunidades de virem a ser alforriados.
A formação de um tronco familiar, com laços de sangue e parentesco cerimonial, era indispensável para à emergência de uma estável classe de cor, pois as instituições sociais legais e cconômicas fundavam-se na familia. Um homem que não pudesse contar com as qualificações de uma esposa e a ajuda de numerosos filhos não poderia de maneira alguma explorar uma pequena lavoura, menos ainda economizar o suficiente para adquirir terras proprias. Enquanto o fazendeiro interferisse na formação da familia escrava, a abolição só poderia vir a suscitar uma massa de jornaleiros rurais — diaristas avulsos – e não uma classe de pequenos agricultores. Não se pode supor que as intervenções dos fazendeiros tivessem esse fim em vista; é possivel que os atos deliberados dos fazendeiros se destinassem a criar um campesinato dependente, apesar das dificuldades que tal grupo pudesse oferecer para a persisténcia e ampliação do sistema das grandes lavouras.
IRMANDADE DE SÃO BENEDITO
É provável que existisse alguma forma de organização social além do casal escravo, no seio da população cativa, mas disso quase não restou sinal. Em 1884, o vigário de Rio Claro, Néry de Toledo, escreveu que seu antecessor “tolerara por muitos anos” uma irmandade – de São Benedito – cujos membros eram escravos e libertos, provavelmente quase todos moradores da cidade. Mantinha um fundo na paróquia, constituido de contribuições, que se aplicava numa celebração anual. Irmandades religiosas eram uma importante instituição social e politica nas cidades pequenas, conferindo certa posição e cimentando as relações entre vizinhos. O vigário, porém, dissolveu a sociedade, juntamente com outras na cidade, até que “’tivessem um compromisso
legal”. Manifestou-se uma reação contra essa medida, que ele imaginou sombriamente que se devia a inimigos pessoais. Tacitamente, ele presumia que a irmandade fosse instrumento de pessoas de um nivel social mais elevado, o que é dificil de aceitar por completo. A manipulação de grupos de classes inferiores é um elemento comum do controle exercido pela elite, mas, por outro lado, a fácil generalização de todas as associações de classe baixa serem manipuladas é um mito ao mesmo tempo proveitoso e reconfortante para a elite.
A igreja católica local, estabelecida e apoiada pelas autoridades civis, mal incluia os escravos entre seus membros. Afinal, era dominada por brancos, quase que para o beneficio exclusivo dos moradores da cidade. É provável que escravos nunca assistissem missa na cidade, a menos que acompanhando os donos. O padre excluia até as pessoas livre que não estivessem bem vestidas, ou que não fossem respeitaveis, a pretexto de que “até Deus no céu faz distinção”. Os escravos recém chegados da Africa e as crianças nascidas na fazenda deveriam ser batizadas, mas é possivel que nem sempre isso fosse feito. O vigirio, que controlava o cemitério local, recusava-se o enterrar escravos, sob a suspeita de que fossem pagãos, atitude que devia relacionar-se com a sua propria falta de empenho na aplicação do sacramento indispensavel. O vigário, como os outros profissionais liberais da cidade, só se aproximava das fazendas quando chamado. Sua correspondência com o governo provincial nunca mencionou a população escrava.
Os protestantes de Rio Claro as vezes tinham ministros, mas a evangelização – mesmo dos livres – não lhes era legalmente permitida. Nem eles o fa- riam, a julgar pela falta de interesse nos libertos, depois da separação du Igreja e do Estado em 1890, ocasionalmente, o vigário também possuia escravos. Segundo os recenseamentos de 1822 e 1835, ele tinha um que trabalhava em servigos domésticos. Alguns padres até chegaram a ter fazendas, mediante herança. Possivelmente tratariam seus escravos menos mal, mas não os alforriavam.
Os escravos tinham outras organizações contrárias da que lhes eram impostas pelos fazendeiros e outros brancos da cidade, mas elas eram necessariamente clandestinas e obscuras. Havia feiticeiros escondidos na floresta que praticavam medicina e bruxaria africanas – mandinga. Os escravos guardavam práticas religiosas proprias e tocavam batuque, e não instrumentos de metal, e dançavam o sensual lundu, em desdém aos brancos, e portanto não para os olhos deles, e que possuíam sentidos fora do entendimento dos seus captores. Nos meses que precederam a abolição, eles levaram seus tambores proibidos para as cidades, acenderam fogueiras e aterrorizaram os moradores com suas danças.
Os escravos de Rio Claro lutavam contra a sua sorte, Os freguentes anúncios nos jornais de escravos fugidos indicam que eles escapavam seguidamente, mas é dificil determinar a taxa de deserções permanentes. O carcereiro, em seu relatório para o chefe de policia da provincia em 1885, declarou um total anual de 47 escravos recapturados, um por cento da população escrava total de então. A maioria era presa pelos capitães-do-mato profissionais. Havia em geral pelo menos três pessoas na cidade com essa ocupação. O pagamento usual, de acordo com a lei provincial, era de 20 mil-réis, se capturado na cidade, ou 50 mil-réis, fora dela. Os anúncios ofereciam bem mais, até 200 mil. réis. Outros escravos voltavam voluntariamente, depois de tentar sem sucesso ganhar o preço da sua liberdade, ou impelidos por laços de fidelidade, ou simplesmente porque a vida de fugitivo era dificil e solitária.
Alguns não eram recapturados, O recenseamento de 1872 registra uma “população ausente”, dado curioso, pois era grande a possibilidade de que muitos escravos ausentes tivessem escapado para sempre (Tab. 3.13).

Os números referentes a segmentos da população são evidentemente incompletos. É provivel que houvesse mais adultos ausentes entre negros e caboclos. O registro de brancos provavelmente era mais fácil de fazer, pois em geral eram pessoas de destaque social cuja ausência temporária seria notada. É provável também que somente fossem indicados os escravos que tivessem desaparecido para sempre, de vez que os fugitivos recentes seriam anotados como ainda presentes, é possivel que todos os escravos adultos ausentes, o dobro dos brancos, tivessem em missão ou tivessem sido alugados, mas isso é pouco provável, pois os salários e aluguéis em Rio Claro nessa época devem ter sido tão ou mais elevados que em qualquer outro lugar do Brasil. O grande número de homens desacompanhados, tanto escravos coma livres, no recenseamento de Rio Claro é forte indicio de que o fluxo de trabalho alugado era no sentido do municipio, e não para fora dele. Pode-se, portanto, levantar a hipótese de que a metade dos ausentes, pelo menos, tivessem fugido de vez. Nesse caso, em qualquer ano dado, 2 ou 3 por cento de escravos sumiam, dentre os quais cerca da metade para sempre — probabilidade que era melhor do que esperar pela alforria. A maior das noticias de recaptura, enviadas pelo chefe de policia de São Paulo, vinha das cidades de São Paulo, Santos e Rio de Janeiro, provavelmente porque a polícia nesses lugares era mais eficiente. Alguns dos escravos dirigiam-se para as zonas novas de exploração, para juntar-se aos pioneiros mestiços.
QUILOMBOS EM RIO CLARO
Havia alguns múcleos de fugitivos na região, mais ou menos permanentes. A palavra quilombo é encontrada muitas vezes como nome de núcleos rurais. A parte da cidade que agora se chama Vila Nova antigamente tinha o nome de Quilombo, assim também como uma das fazendas menores, na área que agora é Ipeúna. Outro ponto na estrada entre Campinas e Piracicaba conservou essa denominação até por volta de 1860, havendo ainda outro lugar, no municipio de Artur Nogueira, 50 quildmetros a sudeste de Rio Claro, onde o nome persisie até hoje. Os quilombos, como outros aglomerados de posseiros, eram regularmente aniquilados com a chegada das fazendas. As vezes escravos fugidos arranjavam trabalho como agregados. Sua situação irregular tornava-os leais ao maximo, mas os fazendeiros tinham de esconder sua origem de outros proprietários de escravos, bem como dos seus proprios escravos. Qutra forma de resisténcia era o furto. Os escravos, familiarizados com a economia monetária pois muitas vezes trabalhavam por dinheiro nos seus dias livres, contrabandeavam material dasfazendas de café para comerciantes de passagem ou outros trabalhadores. Muitos contratos entre fazendeiros e empreiteiros proibiam a estes negociarem sem permissão com os escravos. Esses atos de reapropriação, eram considerados com benevolência pelos trabalhadores livres, que de boa vontade se tornavam cúmplices dessas transações.
Os escravos as vezes matavam seus captores. Três escravos foram acusados de homicidio nos tribunais de Rio Claro. Romão matou seu dono, José Ferraz de Campos, em 1860, e Guilherme, junto com quatro companheiros, matou um feitor na fazenda de Antônio José Vieira Barbosa, em 1877. Romão foi enforcado. Guilherme, provavelmente porque sua vitima era de classe inferior, recebeu 300 chicotadas e foi metido num colete de ferro que teve de usar durante três anos. Um terceira, condenado pelo homicidio de um escravo feitor, em 1866, já citado, também recebeu chicotadas como punição. Como Rio Claro era nessa época a sede de um tribunal distrital, outros julgamentos por crime de morte foram ali conduzidos. Em 1849, um escravo foi condenado à prisão perpétea por ter matado seu dono em Descalvado, e em 1860 outro foi executado na cidade pelo assassinio de seu dono em Araraquara. Havia mais homicidios que julgamentos. Pelo menos uma outra morte foi cometida abertamente, a de um feitor da fazenda de José Ferraz de Sampaio, em 1871, mas os atacantes nunca foram presos.
O evenenamento da família de Alfredo Ellis Jr.
Os escravos com maior frequência apelavam para a violéência disfarçada. Alfredo Ellis Jr. acusou uma escrava mucama, chamada Dita, africana, que pertencia ao seu avô, Francisco da Cunha Bueno, de haver envenenado em ocasiões distintas a sogra, o cunhado e a esposa de seu dono! O veneno, extraido de uma cobra ou escorpião, fora fornecido por um feiticeiro da floresta. Ainda que o médico suspeitasse de crime, a policia não tomou providências, possivelmente por falta de provas. Ellis não explica por que se permitiu que uma assassina continuasse na cozinha, mas possivelmente ela não se tornou suspeita até a ocorrência da terceira morte misteriosa.
Ellis talvez exiba um pouco da paranóia dos fazendeiros nessa narrativa e, com certeza, quando prossegue para afirmar que tais mortes se sucediam aos milhares. Outros historiadores contavam histórias semelhantes; uma cobra na cama, um escorpião na bota, vidro moido no angu, tudo aparentemente acidental e impossivel de descobrir. Um farmacéutico imigrante de Araras recorda que ele tinha de ter a extrema cautela de fechar com um selo os medicamentos que tivessem de ser apanhados por escravos, pois esses eram mestres na arte de envenenar com plantas, e bastante vingativos para aproveitar a oportunidade. Mesmo quando esses atos furtivos eram descobertos, o escravo enfrentava a justica pública. O dono talvez se livrasse dele pessoalmente, de modo igualmente furtivo, a fim de impedir que se soubesse que fora enganado por um escravo ou talvez simplesmente vendesse o escravo, evitando assim perder o seu investimento. Assim, os donos que maltratavam os seus escravos de vez em quando recebiam a sua paga.
Os proprietários tinham constantemente consciência dos perigos que os rodeavam. Andavam sempre armados. José Vergueiro tinha dois cães que o seguiam por toda parte, e se comportava diante dos escravos como um domador de leões. Os escravos respondiam a essa provocação permanecendo totalmente impassiveis. Lamberg testemuphou a situação na fazenda Ibicaba: Vergueiro repetindo aos berros as instruções mais simples, em meio a pragas e ameaças, enquanto os escravos mantinham-se imóveis, negando-lhe o menor sinal de reconhecimento ou compreensão. Uma demonstração de medo torná-los-ia vulneráveis, rancor suscitaria represália, mas a indiferença era um espelho no qual o dono podia contemplar o próprio terror e frustração. Como parece estranho que um homem fosse escolher tal caminho para si mesmo, pois apenas a raiva podia sustentá-lo.
É claro que os proprietários temiam revoltas. Mais de uma vez os feitores tinham sido espancados pelo bando todo, que então fugia em conjunto. O que aconteceria se esses fugitivos encontrassem outros? E se cles conspirassem juntos, não por coincidência mas como resultado de um plano? Para impedir esse perigo, os donos proibiam tambores, e escalonavam os dias de descanso para que eles não ficassem de folga ao mesmo tempo. Outra falta contra a fé católica:
“Nesta fazenda eu sou o papa ”, alardeavam muitos proprietdirios. Não houve um levante geral em Rio Claro até o ano que antecedeu a abolição – levante que foi uma das principais causas da abolição, e que será abordado mais adiante – mas a inquietação da população livre diante do despertar do sentimento de injustiça no meio dos escravos precedeu de muito a crise final.
Os donos de escravo atingiram esse impasse porque jamais tinham conseguido base moral para defender sua posição. Uma carta de alforria escrita por Maria Severina Borges, em 1857, talvez tenha sido a única declaração escrita a expressar a contradição moral da escravatura, mas ninguém teria à temeridade de discordar: “por ver que a escravidão é toda nascida da ordem da violência e despotismo, e ser em tudo incompatível com as leis de N. 8. Jesus Cristo”, E Maria Paes de Barros, iso ser apresentada pela primeira vez aos escravos pelo marido, logo após o casamento, comoa sua esposa e a nova dona deles, encolheu-se e pensou: ” Aí de mim! se eu pudesse dizer-lhe: vão-se embora — estão todos livres!” A ordem moral numa sociedade escravagista era inevitável; ela tinha de ser promovida no seio dos proprios escravos, pois se eles fossem amorais seriam trabalhadores de comportamento imprevisivel e incontrolável. As qualidades morais dos escravos – que se reconhecia de má vontade, complacente e imperfeitamente, e mal se recompensava – eram essenciais, como todos bem compreendiam, para a sobrevivência do sistema da escravatura.
Dois episódios eloquentes merecem ser mencionados. Um jornal noticiou em 1885 que uma escrava de Rio Claro, cujo nome foi omitido, salvara uma criança de morrer abandonada. O ato impressionou a gente da cidade de tal maneira que se começou a recolher dinheiro para comprar-lhe a liberdade. Um relatório policial de 1877 conta como um escravo da fazenda Palmeiras (havia diversos com o mesmo nome, de modo que não é possivel saber qual o envolvido no caso) correu atrás do filho do seu senhor quando o observou sair, embriagado portando uma espingarda. “Procurando evitar algum conflicto na vizinhança”, o escravo pediu pela arma, não sendo atendido pelo filho que tomou por desaforo ele na qualidade de escravo fazer tal exigéncia”, e o agrediu com a coronha da espingarda. Um escravo recompensado, o outro gravemente ferido, mas ambos por atitudes de alto conteúdo moral. É bem possivel que a policia se interessasse pelo últimoa caso com uma intenção previdente: o inspetor talvez desejasse demonstrar o desejo de proteger um ESCRAVO que preservara a paz, a de que outros escravos não se sentissem desestimulados de praticar atos semelhantes.
Em circunstâncias ordinárias, a policia não vinha até as fazendas tomar depoimentos de escravos. Em última análise, na consciência profunda deveria começar a se fazer sentir na sociedade escravagista, no sentido de que a sociedade se beneficiaria se os escravos aceitassem participar de uma comunidade de interesses no qual eles se sentissem encorajados a comportar-se como homens e mulheres morais, e não meramente como animais, apesar de que nem os seus senhores nem o restante da população admitisse abertamente o seu sacrificio, ou lhes concedesse a justa recompensa que mereciam: a libertação do cativeiro.
REFERÊNCIA
Rio Claro: um sistema brasileiro de grande lavoura, 1820-1920. Autor: Warren Dean. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1977.
Este conteúdo apresenta resumos e comentários baseados no livro “Rio Claro: Um Sistema de Grande Lavoura 1820-1920” (Warren Dean, 1977). Destina-se a fins educativos e de pesquisa, sem fins lucrativos. Recomendamos a aquisição e leitura da obra completa.

2 comentários em “Capítulo 3: O Trabalho Escravo”