Os povos indígenas isolados são uma parte única e vulnerável da rica tapeçaria da cultura brasileira. Vamos dar um olhar mais atento a quatro desses grupos e suas características distintas. É importante entender a diversidade e a importância de respeitar a autonomia e os direitos dessas comunidades.


1. Os Zo’é
Onde estão: PA
Quantos são: 331 (Iepé, 2022)
Família linguística: Tupi-Guarani

Os Zo’é, também conhecidos como jo’é [zo’é], se autodenominam “nós mesmos,” o que os diferencia dos não-índios, a quem chamam de kirahi. Esse termo foi adotado gradualmente e passou a identificar o próprio povo. No entanto, inicialmente, não era usado para autodefinição, mas para designar qualquer pessoa que adquirisse alguma proximidade e, assim, fosse considerada “gente como nós”. A transformação desse pronome em etnônimo ocorreu à medida que os Zo’é passaram a se ver como “índios”, uma categoria que antes lhes era desconhecida e que surgiu durante o convívio com diferentes grupos de não-indígenas. O termo Poturu, ou Poturujara, foi inicialmente difundido como o nome dos índios do Cuminapanema, mas na verdade, referia-se apenas à madeira da árvore usada para confeccionar os adornos labiais.
Língua
Os Zo’é são falantes de uma língua Tupi-Guarani, que faz parte do tronco linguístico Tupi. Nas últimas quatro décadas, muitos jovens e todos os chefes de aldeia aprenderam a se comunicar em português. Atualmente, cerca de 20 jovens estão envolvidos na leitura e escrita em sua língua, utilizando a grafia proposta em estudos linguísticos (Cabral, 2013).
Histórico de Contato e Convivência com Kirahi (Não-Índios)
Os Zo’é foram inicialmente apresentados ao mundo em 1989, em reportagens que destacavam sua “pureza” e “fragilidade,” descrevendo-os como um dos últimos grupos “intactos” na Amazônia. Essa atenção atraiu a Missão Novas Tribos, que iniciou seu trabalho na região em 1982. Foram cinco anos de tentativas para “pacificar” os Zo’é até que a Missão Novas Tribos estabeleceu sua base “Esperança” na Terra Indígena Zo’é.
Antes do contato com a missão, os Zo’é já tinham experiências indiretas com não-índios, incluindo a visita de uma mulher que viajou até Santarém no final do século XIX. Durante a década de 1960, caçadores de felinos conhecidos como “gateiros” percorriam seu território. Esses contatos eram indiretos, já que os Zo’é não viam os forasteiros. Em 1975, eles foram surpreendidos por visitas mais espetaculares, incluindo lançamento de roupas e objetos por helicóptero. A Missão Novas Tribos se aproximou com presentes lançados de avião ou deixados no caminho das aldeias.
Entre 1982 e 1987, houve visitas frequentes de missionários e contato com as aldeias dos Zo’é. Os Zo’é alegam que muitas pessoas ficaram doentes após essas visitas, e algumas morreram de doenças pulmonares, já que os missionários demoravam meses para retornar. Em outubro de 1987, os Zo’é chegaram à Base “Esperança,” marcando o “contato” com a Missão Novas Tribos.
A Funai assumiu a área em 1991 e, desde então, tem desempenhado um papel fundamental na proteção dos Zo’é e de sua terra, que foi demarcada entre 1996 e 1998. Nos últimos anos, houve um aumento significativo na população Zo’é, de 172 em 1998 para 315 em 2019, e um processo de abertura de novas aldeias, passando de 4 para 47 aldeias.
Atualmente, os Zo’é têm um Plano de Gestão Territorial e Ambiental (PGTA), que define suas prioridades e diretrizes para proteger sua terra e qualidade de vida. Eles planejam manter sua presença e ocupação em vastas áreas de seu território, enfatizando o processo de dispersão de aldeias como um dos fundamentos do bem-viver. Além disso, eles são ativos na fiscalização para impedir a presença de invasores, especialmente na região rica em castanhais, que é fundamental para a alimentação Zo’é.
[RETIRADO DE https://pib.socioambiental.org/pt/Povo:Zo’%C3%A9]
2. Os Kanoê
Onde estão: RO
Quantos são: 319 (Siasi/Sesai, 2014)
Família linguística: Kanoe
Os Kanoê são um grupo indígena que se encontra na região sul do Estado de Rondônia, próxima à fronteira com a Bolívia. Existem duas situações diferenciadas de contato com a sociedade envolvente entre os grupos dessa etnia. A maioria dos Kanoê vive ao longo das margens do Rio Guaporé e tem uma intensa inserção na sociedade brasileira, com muitos casados com membros de outras etnias ou não indígenas. Apenas três pessoas conhecem a língua nativa, mas eles estão conscientes de sua identidade étnica e pretendem desenvolver projetos para reavivar sua cultura e língua.
Por outro lado, há uma única família Kanoê composta por três membros que habita o Rio Omerê, afluente do Corumbiara, que foi contatada pela Funai apenas em 1995 e tem se mantido em relativo isolamento. Esses grupos Kanoê, cada um a seu modo, têm histórias trágicas que resultaram em uma significativa redução populacional. Atualmente, eles lutam por sua sobrevivência física e cultural em uma região amplamente ocupada por madeireiros, grileiros e outros agentes que ameaçam suas terras e modo de vida.
Os Kanoê do Rio Guaporé vivem em áreas como as Terras Indígenas Rio Branco e Rio Guaporé, bem como no município de Guajará-Mirim. Além disso, há uma família na Terra Indígena Pacaás-Novas (P.I. Deolinda) e outras famílias na TI Sagarana, ambas habitadas pelos Wari. No entanto, há possíveis parentes mais distantes dos Kanoê vivendo em outras regiões de Rondônia, dos quais não se tem notícias há muito tempo.
Historicamente, a região sul do Estado de Rondônia foi habitada por diversos grupos indígenas falantes de línguas diferentes, mas que compartilham muitas características culturais. A semelhança cultural entre esses grupos fez com que fossem identificados como partes de um “complexo cultural Marico”. No entanto, os Kanoê fazem parte de um grupo distinto e foram contatados quando o General Rondon atravessou a região dos rios Pimenta Bueno e Corumbiara em 1909. Durante o século XX, o contato dos Kanoê com os brancos resultou em mortes por doenças introduzidas pelos não indígenas e também por conflitos armados, especialmente durante o período da ditadura militar no Brasil.
No caso específico dos Kanoê do Rio Omerê, eles foram contatados oficialmente pela Funai em 1995, depois de anos de tentativas por parte da Frente de Contato. Essa família Kanoê, composta por uma mãe e seus filhos, conseguiu sobreviver em relativo isolamento após possíveis massacres que quase levaram à dissolução do grupo. A mãe, Tutuá, lutou pela sobrevivência de seus filhos após a morte de seu marido e outros membros da comunidade em circunstâncias violentas. Atualmente, essa família está sob a proteção da Funai para evitar interferências externas em sua vida isolada.
3. Os Akuntsu
Onde estão: RO
Quantos são: 3 (Fabricio Amorim, 2019)
Família linguística: Tupari
Os últimos cinco sobreviventes do grupo conhecido como Akuntsu vivem em pequenas malocas próximas umas das outras, nas matas do igarapé Omerê, um afluente da margem esquerda do rio Corumbiara, localizado no sudeste do estado de Rondônia, no Brasil. Esta área constitui uma pequena reserva de mata que outrora pertenceu a uma fazenda particular, mas foi interditada pela Fundação Nacional do Índio (Funai) no final dos anos 1980. A região é caracterizada por uma floresta equatorial de terra firme, com razoável incidência de pequenos morros, poucas nascentes e, como a maioria das reservas de mata em Rondônia, está seriamente ameaçada pelo avanço da agropecuária.
As informações disponíveis sobre o nome “Akunt’su,” “Akunsu” ou “Akuntsu” na literatura etnográfica são praticamente inexistentes, pelo menos até o contato oficial com a Funai em 1995. A única referência anterior se encontra em um livro de Frans Caspar, chamado “Tupari,” onde é mencionada uma tribo “perigosa” e “terrível” chamada “Akontsu” pelos informantes tupari. Essa tribo habitava as florestas a leste das terras dos Tupari e era praticamente desconhecida por eles. Os Akuntsu, no entanto, viviam a nordeste, um pouco mais a leste, o que pode explicar a confusão.
É importante ressaltar que “Akuntsu” ou “Akunsu” não corresponde à autodenominação do grupo. Eles são chamados assim por seus vizinhos Kanoê, que eram remanescentes dos grupos Kanoê contatados pela comissão Rondon nos vales do rio Tanaru entre 1913 e 1914. Os Kanoê mantiveram-se isolados nas matas do Omerê até 1995, quando foram contatados pela Funai pouco antes de seus vizinhos Akuntsu. Os Akuntsu, por sua vez, chamam os Kanoê de “Emãpriá.” Na língua Kanoê, “Akuntsu” parece significar “outro índio,” e essa denominação “Wakontsón” dada à tribo misteriosa pelos Tupari pode ter sido uma maneira de descrever um grupo indígena totalmente desconhecido para eles, baseando-se apenas em informações orais de tempos passados, onde realidade e mito se confundem.
Em relação à população, os Akuntsu são um dos menores grupos étnicos do Brasil. Sua história é marcada por usurpação de terras e massacres. Em meados da década de 1980, eles provavelmente vivenciaram seu último grande conflito com pessoas não indígenas, resultando em um massacre que eliminou cerca de trinta indivíduos. Dez anos depois, quando a Funai entrou em contato pela primeira vez com os Akuntsu, o chefe do grupo, Kunibu, esclareceu que eles foram alvo de um ataque por parte de não indígenas que queriam expulsá-los de suas terras. Kunibu lembrou com pesar os nomes dos mortos, que parecem ter sido mais de quinze.
Em relação ao contato oficial com a sociedade brasileira, a Funai estabeleceu uma frente de atração em 1985 para lidar com índios isolados que estavam na região de Corumbiara. No entanto, em 1986, a área que havia sido interditada para possível contato foi liberada para fazendeiros, o que gerou ameaças à presença dos índios na região. A busca por vestígios da presença indígena na floresta continuou durante os anos seguintes, mesmo diante de ameaças à vida dos sertanistas da Funai.
Em 1995, finalmente, os Kanoê informaram à Funai sobre a presença dos Akuntsu, e uma expedição de contato alcançou as pequenas malocas dos Akuntsu, que estavam muito assustados. Nesse momento, o grupo era composto por sete pessoas, incluindo dois homens adultos, três mulheres (uma mais velha e duas em idade reprodutiva), uma adolescente e uma menina de aproximadamente sete anos.
O medo tornou-se uma parte constante da vida dos Akuntsu devido à história de massacres que sofreram. Kunibu, o chefe do grupo, nunca se aproxima de ninguém sem realizar sopros e benzimentos característicos em ritos xamânicos, acreditando que essas práticas têm o poder de repelir entidades maléficas ou de limpar o corpo e o ambiente de possíveis perigos. O chumbo dos invasores ainda é visível nas marcas em seus corpos como lembrança do ataque que sofreram.
4. Os Korubo
Onde estão: AM
Quantos são: 127 (Funai, 2020)
Família linguística: Pano
Os Korubo, também conhecidos como “caceteiros” devido à fabricação e uso de bordunas, habitam um território ancestral na sub-bacia hidrográfica do rio Itaquaí, um afluente do baixo rio Javari, que serve como uma fronteira natural entre o Brasil e o Peru. Atualmente, a maior parte dos Korubo reside dentro dos limites da Terra Indígena Vale do Javari, localizada no estado do Amazonas, Brasil. Ao longo das últimas décadas, a Fundação Nacional do Índio (FUNAI) realizou diversos contatos com os Korubo, que resultaram em diferentes grupos dentro da população Korubo, alguns considerados de “recente contato” e outros que permanecem em situação de “isolamento.”
O nome “Korubo” é um etnônimo, mas a autodenominação do grupo foi motivo de controvérsia ao longo dos anos e ainda é desconhecida. Eles já foram erroneamente chamados de “Marubões” pela FUNAI, acreditando-se que fossem um subgrupo dos Marubo. Posteriormente, conjecturou-se que a autodenominação dos Korubo fosse “kaniwa,” mas essa hipótese foi refutada. A atual concordância é que os chamados Korubo eram os “índios da confluência [Ituí-Itaquaí].” O termo “Korubo” em si é derivado da língua Matis, onde a raiz “-koru” se refere a “cinza,” “barro” ou “pó,” em alusão ao uso dessas substâncias na pele para afastar insetos. “Korubo” é, portanto, um termo coletivo que faz referência a essa prática. A língua dos Korubo pertence à família linguística Pano, ramo setentrional, e compartilha semelhanças com outras línguas da família, como Matis, Matsés e Kulina-Pano.
A população Korubo ocupava uma vasta área que ia desde a confluência dos rios Ituí e Itaquaí, ao norte, até o divisor de águas dos rios Coari e Branco, ao sul, dentro dos limites da Terra Indígena Vale do Javari. Essa terra foi homologada e registrada em 2001, abrangendo cerca de 8,5 milhões de hectares e é compartilhada por vários grupos indígenas, incluindo os Matis, Matsés, Marubo, Kulina-Pano e Korubo, bem como os Tsohom-dyapa e Kanamari, que são considerados recentemente contatados. A região também abriga um dos maiores números de povos indígenas isolados.
O histórico da região é marcado por conflitos e mortes decorrentes de diferentes frentes de exploração, como a exploração da borracha e da madeira. A exploração da borracha no século XIX deu origem a conflitos e abusos de mão-de-obra indígena. Posteriormente, a exploração da madeira seguiu um padrão semelhante, e a intervenção militar foi necessária para proteger os extrativistas. Esses eventos resultaram na extinção de muitos grupos indígenas e na depopulação dos remanescentes. A região Korubo estava densamente ocupada por não indígenas, o que levou a conflitos e na modificação das áreas de movimentação dos Korubo isolados. O contato com a FUNAI ocorreu em várias fases, com diferentes grupos de Korubo, que agora são classificados como de “recente contato” ou que permanecem em isolamento.
Respeito à Autonomia e Direitos dos Povos Indígenas Isolados
- Diversidade de Experiências: Os povos indígenas isolados representam uma incrível diversidade de culturas, modos de vida e experiências. Cada grupo tem sua própria língua, tradições, sistemas de conhecimento e práticas sociais que são passadas de geração em geração. Respeitar sua autonomia significa reconhecer que esses grupos têm o direito de determinar como desejam viver, preservar e transmitir suas culturas. O respeito à diversidade é fundamental para a riqueza cultural do Brasil e para o enriquecimento da humanidade como um todo.
- Direito de Decidir sobre o Contato: Os povos indígenas isolados têm o direito de decidir se desejam ou não entrar em contato com a sociedade não indígena. Essa é uma escolha crucial que afeta profundamente sua vida, cultura e bem-estar. A imposição do contato pode ser prejudicial, já que esses grupos geralmente não têm imunidade a doenças comuns entre os não indígenas e podem ser devastados por epidemias. O respeito à sua vontade é, portanto, uma questão de proteção de suas vidas.
- Proteção de Territórios: As terras tradicionais desses povos indígenas isolados são vitais para sua sobrevivência física, cultural e espiritual. A preservação de seus territórios é fundamental, não apenas para sua autonomia, mas também para a conservação da biodiversidade e dos ecossistemas na Amazônia e em outras regiões do Brasil. O Estado brasileiro deve garantir que essas terras sejam protegidas contra invasões, extração ilegal de recursos naturais e desmatamento.
- Direitos Culturais: Os povos indígenas isolados têm direitos culturais que devem ser respeitados. Isso inclui o direito de praticar suas tradições, preservar suas línguas, manter seus sistemas de conhecimento e viver de acordo com seus valores culturais. A perda de suas terras e o contato forçado podem resultar na erosão de suas culturas e identidades. Portanto, proteger esses direitos é uma questão de justiça cultural.
- Proteção e Assistência: É importante que o Estado brasileiro, juntamente com organizações indígenas e outros parceiros, estabeleça políticas e práticas que visem à proteção desses povos e à assistência quando necessário. Isso pode incluir a criação de áreas de exclusão para protegê-los contra intrusões, monitoramento de suas condições de saúde e fornecimento de assistência médica quando necessário, bem como apoio à segurança alimentar e ações para combater ameaças como a exploração ilegal de recursos naturais.
- Colaboração e Diálogo: Promover um diálogo construtivo com as lideranças e representantes dos povos indígenas isolados é essencial para entender suas necessidades, preocupações e desejos. A colaboração deve ser baseada em princípios de igualdade e respeito mútuo. Isso envolve ouvir atentamente suas vozes e incluí-los nas decisões que afetam suas vidas e territórios.
Respeitar a autonomia e os direitos dos povos indígenas isolados é uma questão fundamental de justiça e cidadania no Brasil. Esses grupos únicos contribuem para a riqueza cultural e ambiental do país, e é responsabilidade do Estado e da sociedade proteger suas vidas, territórios e culturas. O respeito à diversidade e a promoção dos direitos humanos são princípios fundamentais que devem guiar todas as ações e políticas em relação a esses povos.
