Que o rio-clarense avalizou a continuidade do atual governo não é dúvida para ninguém. Maquiagem, maquilagens e marketing aplicados nas principais vias da cidade ajudaram a criar a ilusão de que o grupo no poder sabe o que está fazendo para levar a Cidade Azul aos trilhos do desenvolvimento. Contudo, passada a euforia eleitoral, a conta começa a chegar. Os problemas crônicos permanecem: descontrole orçamentário, falta de apreço pelas principais técnicas de gestão, desconhecimento técnico e a prática sistemática do compadrio e da “tratoragem” – essa tentativa de aparentar competência intelectual que, na verdade, é puro improviso.
Agora, somam-se a essa narrativa desastrosa o fetiche tecnocrático travestido de modernidade e a gestão do biombo – símbolo de um governo que prefere esconder suas falhas com soluções de fachada, como os “puxadinhos” de compensados nos espaços públicos. Exemplos disso incluem o “orçamento mágico,” que escamoteia déficits crescentes, e o calote institucionalizado com restos a pagar. Mais recentemente, veio à tona uma ideia “brilhante”: converter o Departamento Autônomo de Água e Esgoto de Rio Claro (DAAE), uma autarquia autônoma, em empresa pública.
Embora o DAAE seja uma autarquia teoricamente autônoma, sua realidade está longe de refletir essa premissa. O modelo descentralizador, previsto pela Constituição, é sistematicamente ignorado. Na prática, o controle absoluto do orçamento permanece nas mãos do secretário de Finanças, que atua como um verdadeiro tutor do erário público. Recursos, quando liberados, dependem de extensas negociações e burocracias que engessam a capacidade das entidades de atender às demandas da população. Essa centralização não apenas sufoca a eficiência administrativa, mas também retira das entidades públicas o protagonismo que poderiam exercer em favor da sociedade.
A proposta de transformar o DAAE em uma empresa pública sob a justificativa de modernização é um exemplo claro do fetiche tecnocrático do atual governo. Esse movimento oculta o verdadeiro objetivo: preparar o terreno para a privatização, convertendo a água – um direito humano essencial – em mercadoria. A experiência global é contundente ao demonstrar os impactos negativos desse modelo.
Em Paris, a privatização da gestão hídrica resultou em um aumento de 300% nas tarifas em 25 anos, levando à reestatização em 2010【1】. Berlim enfrentou problemas de qualidade e transparência, revertendo a privatização em 2013【2】. Em Buenos Aires, a privatização em 1993 excluiu 30% da população, especialmente os mais vulneráveis, do acesso à água potável【3】.
Ignorar essas lições e insistir em um modelo que trata a água como commodity é irresponsável e viola o compromisso com direitos fundamentais. A Resolução 64/292 da ONU reconhece a água como um direito humano【4】, e o Brasil reforça esse princípio em sua Constituição e na Lei Federal 11.445/2007【5】.
A mudança no modelo de gestão do DAAE poderá trazer graves consequências para a população de Rio Claro. Entre os riscos, destaca-se o aumento das tarifas, impactando principalmente as famílias de baixa renda. Além disso, o foco em lucro pode comprometer investimentos essenciais em infraestrutura e proteção dos recursos hídricos, com consequências ambientais e sociais de longo prazo.
Enquanto cidades ao redor do mundo caminham para reestatizar serviços hídricos, Rio Claro parece trilhar o caminho oposto. É hora de reagir. A comunidade precisa exigir audiências públicas, pressionar órgãos como o Ministério Público e mobilizar campanhas para conscientizar sobre os riscos dessa transformação.
A água não é mercadoria. É um direito universal que precisa ser preservado. Defender uma gestão pública eficiente, transparente e voltada ao bem-estar coletivo não é apenas uma escolha, é uma necessidade para garantir o futuro da cidade.
Rio Claro quer de fato assumir seu papel de cidade dormitório e entregar sua autonomia hídrica a uma empresa de Campinas? Quem diria… Salve, Salve, Rio Claro querida!
Fontes
F. Bakker, Paris’ Water Re-Privatization: Lessons Learned from a Failed Experiment, 2011.
Berliner Wasserbetriebe, Transparency and the Challenges of Privatization, 2013.
UN-Water, Buenos Aires Water Privatization: Social and Economic Impacts, 2009.
ONU, Resolução 64/292 – Água Potável e Saneamento como Direitos Humanos, 2010.
Brasil, Constituição Federal e Lei Federal 11.445/2007: Diretrizes para Saneamento Básico, 2007.
Antonio Archangelo é gestor, pesquisador e autor do livro Inovação no Setor Público. Atua como avaliador de políticas públicas em Estados brasileiros.
