✍️ Por Antonio Archangelo
Em uma época marcada pela guerra das narrativas, pela asfixia das vozes dissidentes e pela normalização das verdades de mercado, reler Michel Foucault não é apenas um exercício filosófico — é uma necessidade política. A Ordem do Discurso, texto da aula inaugural proferida no Collège de France em 1970, é uma das mais potentes chaves de leitura para compreender o que está (e o que não está) autorizado a ser dito em nossa sociedade.
🎙️ Quem pode falar? O que pode ser dito?
Foucault não começa falando do conteúdo dos discursos, mas de seus limites. Para ele, não existe “discurso livre”. O que se pode dizer, como se pode dizer e quem está autorizado a dizer são questões reguladas por dispositivos de poder. O saber, longe de ser espontâneo ou neutro, é vigiado, controlado e regulado por instâncias visíveis e invisíveis — da academia às instituições religiosas, da mídia à escola, do Estado ao algoritmo.
“O discurso não é simplesmente aquilo que traduz as lutas ou os sistemas de dominação, mas aquilo por que, e pelo qual, se luta; o poder do qual nos queremos apoderar.”
⚙️ Três engrenagens do controle discursivo
A obra expõe os mecanismos de exclusão que operam no discurso social. Entre os principais:
- Proibição: Certas palavras, temas ou falas são simplesmente interditadas — seja pela censura, pelo tabu, pelo dogma.
- Separação entre razão e loucura: O louco, o desviado, o não-normativo é silenciado ou desqualificado como “não discursivo”.
- Vontade de verdade: A mais sofisticada das armadilhas: a verdade não como descoberta, mas como imposição. O discurso verdadeiro é aquele reconhecido por uma instância legitimadora — científica, jurídica, institucional.
📚 E a escola com isso?
A escola é um dos principais dispositivos de controle e produção de discursos autorizados. Ela define o que é conhecimento, quem tem voz, quais saberes valem. Em vez de campo neutro, a educação aparece como um território profundamente discursivo, onde se disputa o acesso ao que Foucault chama de “a ordem do discurso”.
Assim, repensar o currículo, as avaliações e as práticas pedagógicas à luz de Foucault é subverter as estruturas que silenciam — sobretudo as vozes racializadas, populares, periféricas e dissidentes. É reconhecer que o silêncio também é uma construção discursiva. E que toda palavra dita passa por filtros de poder.
🎓 Quando ensinar é resistir: Foucault entre a escola, o silêncio e o poder
No Brasil do negacionismo, da criminalização da crítica e da perseguição docente, A Ordem do Discurso é mais do que um texto inaugural — é quase um manual de sobrevivência filosófica. Foucault nos ensina que ensinar nunca foi neutro. Toda aula é também um gesto de poder. Toda explicação é um corte no que pode ser dito. Toda escuta é, ao mesmo tempo, escolha e exclusão.
Se em As Palavras e as Coisas o autor desmonta a ideia de uma verdade natural sobre o homem, revelando que até o sujeito é uma invenção histórica recente, em A Ordem do Discurso ele mostra que nem toda palavra é autorizada a circular, e que há sistemas muito bem construídos para organizar, silenciar, filtrar e legitimar o que pode ser dito — e quem pode dizer.
“Nem todos têm o direito de falar. Nem tudo pode ser dito. Nem toda verdade é ouvida.”
— Michel Foucault (adaptado)
🧱 Escola: fábrica de silêncios ou espaço de ruptura?
Ao contrário da retórica liberal que imagina a escola como um santuário de saber, Foucault nos obriga a ver a escola como parte de uma engrenagem disciplinar. Como no cárcere, como no hospital, como no quartel, a escola seleciona discursos, normaliza condutas, atribui valores e silencia dissensos.
Em A Ordem do Discurso, Foucault nomeia com precisão os filtros que operam essa seleção:
- A interdição (não se pode falar de tudo, nem em qualquer lugar);
- A separação entre razão e loucura (só o que parece “racional” é admitido);
- A vontade de verdade (nem toda fala é reconhecida como “conhecimento”).
A escola brasileira, atravessada por currículos coloniais, provas padronizadas e lógicas meritocráticas, torna-se frequentemente o palco dessa mesma maquinaria. Ensinar, aqui, pode significar repetir a ordem do discurso vigente — ou rompê-la. E romper custa caro.
✊🏽 O ensino como resistência
Quando um professor questiona o livro didático, contesta uma narrativa histórica racista, propõe uma leitura de gênero ou escuta o silêncio de um aluno periférico, ele não está apenas “ensinando”: ele está produzindo outro regime de enunciação — onde a palavra do oprimido pode atravessar os muros do silêncio.
A repressão à docência crítica, os ataques à liberdade de cátedra e os projetos de “escola sem partido” revelam o medo das elites de que a palavra desautorizada (a do professor, do estudante, do corpo dissidente, do saber não hegemônico) possa escapar do controle. Afinal, como diz Foucault, o discurso não é apenas o que traduz o poder — ele é também o que está em disputa.
🧠 De qual lado da linguagem você está?
Entre As Palavras e as Coisas e A Ordem do Discurso, Foucault nos oferece uma chave para compreender a escola não como templo da verdade, mas como território de conflito discursivo. Quando se fala de “educação crítica”, não se trata de doutrinar — trata-se de reconhecer que nenhuma pedagogia é inocente, e que toda prática de ensino é uma escolha ética: ou reforça a ordem, ou a desafia.
*Observação: este texto nasceu de diversas anotações e reflexões provenientes das disciplinas ministradas por minha orientadora, Maria Regina Momesso, líder do GESTELD/CNPq.
📚 Para ir além:
- FOUCAULT, Michel. A Ordem do Discurso. São Paulo: Loyola, 1996.
- FOUCAULT, Michel. As Palavras e as Coisas. São Paulo: Martins Fontes, 2002.
- SILVA, E. J. L. da. A Análise Arqueológica do Discurso. Campinas: Autores Associados, 2014.
- PERONI, Vera Maria Vidal. Políticas públicas e gestão da educação em tempos de redefinição do papel do Estado. 2008.
- FREIRE, Paulo. Pedagogia do Oprimido. Paz & Terra.
