Por Antonio Archangelo – Editor do Portal Archa
No Brasil da financeirização absoluta da vida, o discurso sobre os “gastos públicos” se tornou uma forma de governar. Não se trata de diagnóstico técnico ou de debate racional sobre prioridades — trata-se da produção de uma verdade conveniente aos interesses do capital. Como mostrou Foucault (2007), toda verdade é efeito de poder, e o que hoje se repete em colunas econômicas e telejornais é uma verdade forjada: a ideia de que gastar com saúde, educação ou assistência é irresponsabilidade, enquanto transferir bilhões para o sistema financeiro é boa gestão.
Essa lógica não se sustenta empiricamente. O PIB brasileiro cresceu 2,9% no primeiro trimestre de 2025. O desemprego caiu para 7,0%, o menor índice em anos. O Índice de Gini recuou, e o Brasil subiu no ranking de desenvolvimento humano. Ainda assim, o discurso da crise fiscal persiste. Por quê? Porque ele não serve à realidade, mas à manutenção de um regime de verdade neoliberal, que tem como função justificar o desmonte do Estado de bem-estar e legitimar a dominação das finanças sobre os corpos.
O que está em curso não é um ajuste, é uma reengenharia civilizatória. É, como disse Guattari (1996), uma mutação no próprio coração da subjetividade. O Estado já não se define mais por aquilo que provê, mas por aquilo que regula, audita, avalia. É o Estado-gerente, gestor de contratos, operador de planilhas, desprovido de qualquer vocação emancipadora. Trata-se de um Estado pós-executor, cuja função é garantir a fluidez dos fluxos de capital e a estabilidade da ficção monetária, mesmo que isso custe a destruição dos direitos sociais — ou, talvez, porque isso garanta sua destruição.
A reforma do Estado promovida pelo MARE nos anos 1990 consolidou a arquitetura institucional desse modelo: a publicização das políticas sociais, a terceirização dos serviços, a transformação de direitos em metas e indicadores. A escola virou ranking. O hospital, OS. A creche, parceria. E a cidadania, um número.
A racionalidade da austeridade fiscal, portanto, é menos uma questão de equilíbrio e mais uma forma de dominação discursiva. Como afirma Silva (2014), a linguagem é o lugar da constituição dos sujeitos, e o discurso da responsabilidade fiscal molda o gestor como figura do corte, da contenção, da punição. A boa gestão passou a ser a gestão da escassez. Governar virou sinônimo de dizer “não”.
A própria figura do gestor é capturada por esse regime discursivo. Ele não é mais sujeito político, mas sim técnico operacional. Como analisou Foucault, o poder não se exerce apenas por interdições, mas sobretudo pela produção de subjetividades: o gestor internaliza a escassez como verdade, naturaliza a lógica da competição como critério e opera sobre a população como se ela fosse problema e não potência.
Guattari (1986, 1992) aprofunda essa análise ao afirmar que o capitalismo contemporâneo não apenas explora — ele fabrica subjetividades, agenciando os desejos, formatando os corpos, colonizando o imaginário. A lógica da planilha substitui o debate sobre justiça; a métrica do desempenho substitui o compromisso com a vida. Vivemos sob uma intoxicação semiótica generalizada, em que o discurso da eficiência elimina qualquer traço de humanidade na política pública. A linguagem do gestor virou uma fala esvaziada, sintética, corporativa, incapaz de imaginar outros mundos.
E quando a linguagem se esvazia, como alerta Guattari (1992), resta apenas o imperativo maquínico: “otimizar”, “desempenhar”, “modernizar”. Mas modernizar o quê? A gestão da morte? A gestão da fome? A gestão da ausência? Porque é disso que se trata: uma máquina estatal que opera para manter vivas as estruturas da desigualdade, enquanto se mascara sob o verniz da técnica.
A crítica não é ao controle orçamentário, mas à sua transformação em fim absoluto. Ao culto ao equilíbrio fiscal que ignora a realidade dos mais pobres. Ao tecnocratismo cínico que celebra metas enquanto escolas caem e filas do SUS se arrastam. Ao silenciamento das vozes populares que são expulsas dos espaços de decisão porque não têm “capital simbólico” suficiente para ocupar os lugares legítimos da fala, como diria Silva (2014).
Como, então, resistir?
É preciso recuperar o Estado como campo de disputa — e não como estrutura neutra. É preciso desvelar, como nos ensinou Foucault, os mecanismos que fabricam a verdade da austeridade, e substituí-los por uma nova política da verdade: uma que afirme a vida, que coloque a justiça social no centro, que se comprometa com a produção de novas subjetividades coletivas capazes de dizer não à lógica da obediência e do sacrifício.
O desafio não é técnico, é ético. É existencial. Como alerta Guattari (1996), se não formos capazes de inventar novas formas de vida, estaremos condenados à repetição do mesmo — à gestão infinita da barbárie.
Recusar o discurso da austeridade, portanto, não é populismo. É resistência à tecnocracia que legitima a injustiça. É insurgência contra a máquina que fabrica a precariedade como destino. É defesa radical da política como construção coletiva do comum.
Porque austeridade não é responsabilidade. Austeridade é ideologia. É, talvez, o mais sofisticado dos dispositivos de dominação do nosso tempo.
Referências
- BRASIL. PIB cresce 2,9% no primeiro trimestre de 2025. Disponível em: https://www.gov.br/secom/pt-br/assuntos/noticias/2025/05/pib-cresce-2-9-no-primeiro-trimestre-de-2025
- IBGE. Taxa de desocupação recua para 7,0%. Disponível em: https://www.ibge.gov.br/explica/desemprego.php
- FOLHA DE S. PAULO. Desigualdade de renda volta a cair. 2025.
- CNN BRASIL. Brasil sobe 5 posições no IDH. Disponível em: https://www.cnnbrasil.com.br/nacional/brasil/brasil-sobe-5-posicoes-no-ranking-de-desenvolvimento-humano-da-onu/
- TRADING ECONOMICS. Government Debt to GDP – Brazil. https://pt.tradingeconomics.com/brazil/government-debt-to-gdp
- CNN BRASIL. Brasil é o país que mais paga juros de dívida no mundo.
- PERONI, Vera Maria Vidal. Políticas públicas e gestão da educação em tempos de redefinição do papel do Estado. In: VII Seminário de Pesquisa em Educação da Região Sul. Itajaí, 2008.
- SILVA, E. J. L. da. A análise arqueológica do discurso: uma lente de pesquisa em educação. Revista Temas em Educação, v. 23, n. 1, p. 148–159, 2014.
- FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder. São Paulo: Graal, 2007.
- GUATTARI, F.; ROLNIK, S. Micropolítica: cartografias do desejo. Petrópolis: Vozes, 1996.
- GUATTARI, F. Caosmose. São Paulo: Editora 34, 1992.
- GUATTARI, F. Revolução Molecular. São Paulo: Brasiliense, 1986.
