Sangue Rubro: Alma Preta: A travessia poética do signo ao sangue

Uma leitura crítica, filosófica e semiótica da trajetória poética de Antonio Archangelo

No novo projeto Sangue Rubro: Alma Preta, Antonio Archangelo anuncia a culminância de sua travessia poética, marcada por uma incorporação radical do signo como corpo, sangue e voz insurgente. Trata-se de um marco em sua trajetória, onde o signo já não é apenas manipulado, mas encarnado. Este ensaio busca explorar, sob uma lente crítica e semiótica, os caminhos que o levaram até essa encruzilhada poética — desde a tetralogia dos archés até o Manual da Guerrilha Alienada.

I. O verbo como origem: o ciclo pré-socrático

Na tetralogia formada por Ápeiron, Homeomerias, Nheengatu e Ataraxia, Archangelo mobiliza quatro archés — respectivamente Anaximandro, Anaxágoras, a cultura brasileira e Epicuro — como suportes filosófico-simbólicos para discutir, por meio do nonsense, as possibilidades de sentido da vida.

Em Ápeiron, a palavra é origem informe. Os poemas “Gipsófila” e “Desagoneio” esbanjam morfemas desarticulados, sílabas inventadas, termos arcaicos e invenções lexicais. A poesia torna-se substância fluida, evocando uma semiótica pré-discursiva, onde o signo ainda não está submetido à lógica da significação, mas vibra em estado de potência.

Homeomerias desloca o centro da criação para a fé. O poema “Ogdóade” reatualiza as cosmogonias gnósticas e herméticas, reconstruindo uma metafísica do verbo. Aqui, cada palavra não representa, mas invoca. O signo assume papel ritualístico, como glossolalia ou como fala oracular. A linguagem é sagrada e ruína: tem sua origem no mistério e sua expressão na queda.

Com Nheengatu, Archangelo muda de chave: a cultura e a língua tornam-se campo de guerra. Em “Genealogia dos fracos” e “Necrochorume”, há uma semiótica da resistência. O signo, antes mistério, agora é corpo histórico: fala mestiça, linguagem periférica, antropofagia dos saberes. A poesia se faz arqueologia crítica, desenterrando os escombros de um Brasil não oficial.

Já em Ataraxia, o prazer não é celebração, mas ironia. Em “Crioulês” e “Cynar”, o poeta mistura os signos coloniais à oralidade popular e aos resíduos do desejo urbano. A língua é bebida, escarro, gozo e enunciação política. O signo torna-se máscara, ruído e travessia.

II. O delírio estratégico: o Manual da Guerrilha Alienada

O Manual da Guerrilha Alienada representa o ponto de inflexão. A poesia abandona a especulação metafísica como centro e adota a guerrilha simbólica como método. Poemas como “Balbúcias Galegas”, “O pandemônio e a pandemia” e “Epiméleia Heautoú” fazem do discurso uma arma. O nonsense, aqui, torna-se tática: é desvio, ironia, emboscada contra o discurso hegemônico.

Esse livro inscreve a poesia num campo de micropolítica semiótica: o poeta guerrilheiro reconfigura signos, infiltra-se na língua do inimigo, sabota o código com humor, ambiguidade e lirismo. A poesia é combate — não mais místico, mas insurgente.

III. Anúncio: “Sangue Rubro: Alma Preta” — a incorporação do signo

No novo projeto Sangue Rubro: Alma Preta, Antonio Archangelo não apenas escreve: ele encarna. O signo já não é algo a ser manipulado, mas vivido. Em “Ontofagia”, a série de prefixos negativos revela uma subjetividade desdobrada, dilacerada, em conflito entre identidade e alteridade. O eu poético emerge como um signo fraturado — ao mesmo tempo potência divina e resto social.

Em “Tilintar de Alvenaria” e “Capitães do Mato e da Areia”, há uma poética da memória comunitária, onde o signo rememora o corpo do outro — do moleque, do descamisado, do professor reprimido. A linguagem já não é estética: é ética, política, coletiva. Em “Elegia da (In)vasão” e “Pindorama do Kimbundo”, o poeta atualiza o signo nacional e o submete ao crivo da ancestralidade negra, indígena e mestiça. Trata-se de uma decolonialidade semiótica.

Em termos semióticos, pode-se dizer que Archangelo atravessa os três níveis de Peirce — ícone, índice e símbolo — com liberdade e subversão. Seus primeiros livros operam no campo do ícone e da metáfora, seus livros intermediários como índices históricos e políticos, e em “Sangue Rubro” temos o signo como síntese e incorporação — uma fenomenologia do signo vivido.

IV. O poeta como corpo-semioma

Antonio Archangelo construiu, ao longo de quase três décadas, uma obra poética que se estrutura como jornada de iniciação. Sua tetralogia nonsense não era um jogo, mas um rito de passagem. O Manual foi seu tratado estratégico. Sangue Rubro é sua encarnação: um corpo negro semiótico que grita, canta, resiste e se desfaz no tempo.

Como na tradição dos xamãs, o poeta arquétipo de Archangelo não apenas escreve: ele transforma o mundo ao nomeá-lo. O signo, em sua obra, é mais que linguagem — é matéria viva, pulsante, ancestral e porosa.

Seu percurso é a ontogênese de um novo poeta brasileiro: aquele que morde os signos e sangra sentido.

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