O ministro da Educação, Camilo Santana, defendeu no início de junho uma proposta que reacende um velho debate com novos riscos: atrelar os repasses do Fundeb ao desempenho das redes públicas no Ideb. A fala, registrada no Poder360, soa inofensiva à primeira vista — mas carrega consigo uma reorientação perigosa para o futuro da educação pública brasileira.
“Tenho discutido internamente para que possamos propor uma mudança no Fundeb, para haver uma avaliação de resultado. Hoje, o fundo considera basicamente o número de alunos”, afirmou o ministro. “A qualidade da nossa aprendizagem está muito aquém do que desejamos.”
O que está em jogo é mais do que uma mudança técnica no modelo de financiamento. É a tentativa de converter um fundo redistributivo — criado justamente para combater desigualdades históricas — em um mecanismo de premiação por performance. Ou seja, ganha mais quem já está em vantagem, enquanto os territórios mais vulneráveis continuam no abandono.
🎯 Performance como critério, desigualdade como destino
A proposta de Camilo — mesmo contrariando setores do próprio governo — repete o velho roteiro da tecnocracia que ignora as desigualdades estruturais. A lógica meritocrática embutida nesse tipo de proposta é duramente criticada por especialistas como Vera Peroni, Márcia Aguiar, Zara Tripodi, Mariza Abreu e Simone Flach. Todos eles apontam: atrelar financiamento ao desempenho é institucionalizar a injustiça.
Na prática, essa ideia não considera a realidade de milhares de municípios que sequer têm infraestrutura básica, professores com carreira atrativa ou rede de apoio à aprendizagem. Penalizar essas redes por não atingirem metas no Ideb é perpetuar o abismo social sob a roupagem da “eficiência”.
📢 A contraposição: educação como direito, não como prêmio
Na contramão da proposta do ministro, a Campanha Nacional pelo Direito à Educação, sob coordenação de Andressa Pellanda, propõe um caminho mais justo: investir R$ 613 bilhões a mais por ano, o que representa apenas 0,52% do PIB nacional, para garantir o padrão mínimo de qualidade da educação básica previsto na Constituição.
“Esse valor é factível e necessário”, afirma a Campanha. Trata-se de um chamado à responsabilidade do Estado, não à culpabilização dos mais pobres.
❌ O paradoxo do governo democrático com práticas neoliberais
O mais alarmante é o paradoxo: um governo que se pretende defensor da democracia segue se rendendo a lógicas neoliberais que enfraquecem o pacto federativo e aprofundam as desigualdades. O discurso do ministro reverbera as vozes dos “senhores do neoliberalismo” — os mesmos que tratam políticas públicas como planilhas de produtividade, e não como direitos.
Como bem lembra Flach (2009), a distância entre a norma e sua efetivação se amplia quando o Estado abdica da sua função redistributiva. Financiar educação é financiar democracia. Não se trata de bônus por bom desempenho, mas de garantir base digna para que todas e todos possam aprender.
🤔 Afinal, que país queremos?
A pergunta que resta é direta e incômoda: que tipo de país queremos construir? Um país que recompensa os já privilegiados ou um país que, enfim, decide enfrentar suas desigualdades históricas com coragem, redistribuição e compromisso com a cidadania plena?
Defender o financiamento público da educação como direito inalienável é, hoje, um dos gestos mais profundos de resistência democrática. Qualquer tentativa de indexar esse direito a métricas de desempenho serve mais aos mercados do que às escolas.
📚 Referências:
- ABREU, Mariza. Desafios do financiamento da educação básica no Brasil. In: CASTRO, M. H. G.; CALLOU, R. (orgs.). Educação em pauta: uma agenda para o Brasil. Brasília: OEI, 2018.
- AGUIAR, Márcia; TUTTMAN, Malvina T. Políticas educacionais no Brasil e a Base Nacional Comum Curricular: disputas de projetos. Em Aberto, v. 33, n. 107, 2020.
- BRASIL. MEC. Ministro da Educação fala em alterar Fundeb, mas é contra cortes. Poder360, 11 jun. 2025. Disponível em: poder360.com.br.
- CAMPANHA NACIONAL PELO DIREITO À EDUCAÇÃO. É preciso investir R$ 613 bilhões a mais… São Paulo, 8 jun. 2025. Disponível em: campanha.org.br.
- CÂNDIDO, R. A. O. O regime de colaboração na constituição e nas legislações entre 1988 e 2020. Revista de Administração Educacional, v. 12, n. 2, 2021.
- FLACH, Simone. O direito à educação e sua relação com a ampliação da escolaridade obrigatória. Ensaio, v. 17, n. 64, 2009.
- PERONI, V. M. V. Políticas públicas e gestão da educação em tempos de redefinição do papel do Estado. VII Seminário de Pesquisa em Educação da Região Sul. Itajaí, SC, 2008.
- TRIPODI, Z. F.; PERES, U. D.; ALVES, T. Os desafios do financiamento da educação básica no Brasil em perspectiva multidisciplinar. Arquivos Analíticos de Políticas Educativas, v. 30, n. 45, 2022.
