🌎 Bairrismo municipalista e o sonho de um aeroporto regional

Por Antonio Archangelo* — para o Portal Archa

Acompanhar a política rio-clarense na década de 2010 foi algo bem nonsense. No auge do governo Lula, tudo que era anunciado lá, Rio Claro de certa forma era contemplado quase que imediatamente — UPA, SAMU, PAC, etc. Um dia você estava fazendo notícia sobre lixo em algum terreno baldio, no outro estava em um evento com Dilma Rousseff e Michel Temer na estação ferroviária da cidade ou em Piracicaba — oportunidade que transformou a região em um local de peregrinação de várias autoridades políticas, de governo e oposição. Tempo bom aquele. E foi neste cenário de filme que ouvi pela primeira vez a história do aeroporto regional, quando ainda era repórter do Jornal Cidade.

Confesso que achava aquilo meio impossível. Porém, o projeto andou rápido naquele período, até o golpe que retirou Dilma do poder. Aí — tudo que escrevi acima — foi ladeira abaixo. Inclusive as relações políticas, como a do prefeito Palmínio Altimari Filho, o Du Altimari, e seu lustre, então desconhecido, secretário de Negócios Jurídicos: Gustavo Perissinotto — hoje prefeito reeleito da Cidade Azul.

De lá pra cá, andei pelo Brasil e fui entender melhor como a Gestão Pública deveria ser pensada e a certeza é que em tempos de desafios complexos e demandas crescentes, pensar apenas no limite do próprio município é uma atitude míope — e perigosa. O chamado “bairrismo municipalista” continua a ser uma das principais barreiras para a consolidação de políticas públicas eficientes em escala regional. Prefeitos que veem o vizinho como concorrente, e não como aliado, frequentemente sabotam projetos estruturantes por medo de perder protagonismo ou votos locais.

A consequência disso? A estagnação de áreas vitais como mobilidade, logística, saneamento, saúde e desenvolvimento econômico. A Região Metropolitana de Piracicaba, por exemplo, tem potencial para ser um polo logístico-industrial de referência nacional. Mas falta a articulação política necessária para transformar potencial em realidade.

Casos bem-sucedidos como o Consórcio Intermunicipal do Grande ABC, na região metropolitana de São Paulo, mostram o quanto a cooperação regional pode ampliar a eficiência da gestão, atrair investimentos e racionalizar recursos. O mesmo vale para o Aglomerado Urbano de Jundiaí, que integra planejamento urbano, mobilidade e políticas ambientais entre diferentes prefeituras com visão estratégica compartilhada.

Diante disso, o caso do aeroporto regional entre Rio Claro e Piracicaba torna-se um exemplo tácito — e sintomático — da falta de sinergia histórica entre os principais polos urbanos da região. Desde 1853, quando Rio Claro se separou administrativamente de Limeira e Piracicaba, cada cidade parece ter seguido trajetórias institucionais paralelas, raramente convergentes. As mágoas políticas e a ausência de pactos regionais perenes criaram um cenário em que cada um puxa uma corda invisível para um lado diferente.

Hoje, com maior peso populacional e econômico, Piracicaba assumiu informalmente um papel central na RMP — mas raramente se compromete com estratégias que extrapolem suas fronteiras. Essa ausência de visão compartilhada enfraquece a região como um todo, especialmente quando comparada a outros agrupamentos urbanos mais coesos do estado de São Paulo. Isso pode ser observado inclusive em áreas já institucionalizadas de gestão compartilhada, como a saúde e a segurança pública. A Diretoria Regional de Saúde (DRS-10), sediada em Piracicaba, coordena ações do SUS para os 26 municípios da região, incluindo Limeira e Rio Claro, como a famigerada PPI e o sistema CROSS, muito pouco compreendidos pelos gestores, o que evidencia a centralização administrativa sem contrapartida proporcional de decisões compartilhadas — pode instaurar um caos.

O mesmo ocorre na segurança: os comandos regionais das Polícias Civil e Militar também estão em Piracicaba, o que torna ainda mais urgente a construção de pactos federativos locais capazes de garantir equidade na definição de prioridades e no uso de recursos estaduais. A Constituição Federal (art. 23, V e IX; art. 25, §3º) e o Estatuto da Metrópole (Lei Federal nº 13.089/2015) partem do princípio de combater as desigualdades regionais e promover a governança interfederativa. Não dá pra ter tudo em todo lugar; se cada cidade, por exemplo, tiver seu megalomaníaco aeroporto, todos fecharão em pouco tempo por falta de demanda.

📍 A novela do aeroporto regional: entre Tanquinho, utilidade pública e traçados divergentes

Isso posto, vi essa semana o ressurgimento da proposta de construção de um aeroporto regional no entorno do bairro Tanquinho que remonta à gestão de Palmínio “Du” Altimari (PMDB), que governou Rio Claro entre 2008 e 2016. O Instituto Tecnológico de Aeronáutica (ITA) realizou os estudos preliminares de viabilidade técnica e apontou uma área entre Rio Claro e Piracicaba como ideal para a implantação da pista, com cerca de 2.000 metros. Segundo informações atualizadas, o local originalmente cogitado para o aeroporto ficava do lado esquerdo do pedágio da Rodovia Fausto Santomauro Luís (RC–Piracicaba), na direção da RC–Iracemápolis. Um segundo local, considerado plano B, foi identificado do lado direito do pedágio, já mais próximo ao bairro Tanquinho, na direção da RC–Piracicaba.

A ausência de sobreposição cartográfica pública entre os projetos sugere que podem se tratar de traçados distintos, embora com a mesma vocação logística-regional. O objetivo era ambicioso: receber aeronaves comerciais de médio porte, transporte de cargas leves e voos executivos, com capacidade estimada de 200 mil passageiros por ano.

A disputa sobre a paternidade do projeto começou ali, ainda que nos bastidores. Hoje, já prefeito, Perissinotto tenta apresentar a ideia como nova, ignorando ou deixando em segundo plano o histórico técnico acumulado na década anterior — o que dificulta inclusive a aferição da continuidade ou ruptura do projeto.

📊 Por que a região precisa de um aeroporto regional?

A Região Metropolitana de Piracicaba (RMP), criada em 2021, é composta por 24 municípios, incluindo Rio Claro, Limeira e Piracicaba. A região soma cerca de 1,5 milhão de habitantes e possui um PIB industrial significativo, com destaque para os setores químico, sucroalcooleiro, automobilístico, logístico e educacional.

No entanto, a RMP ainda carece de um vetor aéreo estruturado. Os aeroportos mais próximos — Viracopos (Campinas), Leite Lopes (Ribeirão Preto) e o terminal de São José dos Campos — concentram voos, mas estão distantes o suficiente para comprometer a competitividade logística da região.

Estudos recentes da FGV e da SAC estimam que aeroportos regionais em polos industriais geram, direta e indiretamente, mais de 12 mil empregos ao longo de dez anos, e podem incrementar em até 3% o PIB regional. Um aeroporto em Rio Claro-Piracicaba potencializaria cadeias logísticas, turismo de negócios, e ainda abriria espaço para formação de centros de distribuição e manutenção aeronáutica (MRO), ampliando receitas públicas e privadas.

Segundo dados da Secretaria de Aviação Civil (SAC) e da ANAC, aeroportos regionais com demanda entre 100 e 300 mil passageiros/ano têm recebido atenção especial do Novo PAC (2023–2026), com previsão de até R$ 2 bilhões em investimentos para infraestrutura aeroviária descentralizada.

✈️ O que dizem as regras técnicas da ANAC e da União

Para que um aeroporto regional possa sair do papel, é necessário cumprir uma série de etapas técnicas e jurídicas:

  • Cadastro como aeródromo público na ANAC;
  • Declaração de Utilidade Pública (DUP) pelos municípios;
  • Licenciamento ambiental completo (EIA-RIMA e autorizações da Cetesb);
  • Plano Diretor Aeroportuário (PDA);
  • Operador de aeródromo definido, conforme Resolução ANAC nº 736/2024.

Atualmente, segundo o Ministério de Portos e Aeroportos, há ao menos 12 projetos em análise no Estado de São Paulo para construção, ampliação ou modernização de aeroportos regionais. O caso de Rio Claro e Piracicaba é considerado promissor, mas exige consenso político e agilidade técnica.

Embora a Prefeitura de Piracicaba tenha manifestado publicamente apoio ao projeto em reuniões no Ministério de Portos e Aeroportos, não há decreto formal de utilidade pública publicado até o momento que assegure juridicamente a destinação da área. Já Rio Claro, por sua vez, alienou parte do terreno originalmente previsto, o que gerou dúvidas adicionais sobre sua real disposição em priorizar o projeto.

⚠️ O risco da personalização política e o domo de ferro do populismo

Ao transformar uma proposta técnica em palanque eleitoral, perde-se o horizonte coletivo. O aeroporto regional, se estruturado como consórcio intermunicipal entre Rio Claro, Piracicaba e Limeira, poderia ser um marco de governança regional compartilhada. Mas isso exigiria maturidade política — algo que ainda parece escasso.

A dificuldade de pensar regionalmente é atravessada por uma mentalidade bairrista, na qual cada prefeito só enxerga a própria rua como horizonte de gestão. O quintal do vizinho é visto como ameaça, não como oportunidade. E qualquer projeto compartilhado é descartado se não render capital político imediato.

Esse comportamento revela a diferença entre o gestor público e o megalomaníaco de gabinete. De um lado, o estadista, que planeja com base no interesse comum. Do outro, o populista ou mitomaníaco, que acredita em sua própria farsa, nutrido por um domo de ferro de bajuladores, puxa-sacos e interesses eleitoreiros que sufocam qualquer crítica e isolam o poder da realidade concreta.

Du Altimari, ao vocalizar publicamente a retomada da proposta — como fez em artigo publicado em vários jornais como o jornal O Democrata, em Piracicaba — cobra explicitamente os dois prefeitos a assinarem os decretos de utilidade pública, permitindo que os estudos técnicos avancem com apoio federal. Para Altimari, a ausência desses decretos emperra a ação do Governo Federal e demonstra falta de visão integrada sobre o papel estratégico da Região Metropolitana de Piracicaba. Já Gustavo Perissinotto, ao tentar assumir sozinho a autoria do projeto, parece preferir o voo solo. A disputa por protagonismo pode acabar enterrando a decolagem definitiva da ideia.

O aeroporto regional entre Rio Claro e Piracicaba não é apenas uma obra. É um símbolo da capacidade (ou da incapacidade) de se pensar além do próprio município, articulando desenvolvimento em escala metropolitana.

Com base técnica sólida, estudos prontos e alinhamento com as diretrizes do Novo PAC, a viabilidade do projeto é alta. O que falta — como sempre — é vontade política, coordenação federativa e disposição para que a região pense como um conjunto integrado.

Enquanto isso, seguimos assistindo a mais um capítulo da novela aeroportuária local. E, como toda boa novela, há drama, memória seletiva e personagens que mudam de papel conforme o roteiro eleitoral exige.

📚 Referências

Agência Nacional de Aviação Civil – ANAC. Resolução nº 736/2024.

Secretaria Nacional de Aviação Civil – SAC. Plano de Aviação Regional.

Ministério de Portos e Aeroportos. Programa de Investimentos em Aeroportos Regionais (PAC 2023–2026).

Instituto Tecnológico de Aeronáutica – ITA. Relatórios técnicos sobre viabilidade de pista em Tanquinho (2009–2012).

CETESB – Companhia Ambiental do Estado de São Paulo. Processos de licenciamento ambiental para aeródromos.

Jornal Cidade de Rio Claro. Reportagens de 2014 a 2025 sobre área alienada, topografia, CETESB e tramitação ministerial.

Jornal O Democrata. Artigo de Palmínio Altimari Filho (14/06/2025).

Jornal Cidade de Piracicaba. Entrevistas e ofícios municipais entre 2023–2025.

Fundação Getulio Vargas – Relatório “Impactos Econômicos da Aviação Regional” (2021).

Constituição Federal do Brasil.

Lei Federal nº 13.089/2015 – Estatuto da Metrópole.

*O autor é Gestor Público, mestre em Gestão da Clínica com foco na Regionalização, especializado em Direito Público e Auditoria em Saúde.

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