Xenofobia sanitária: prefeitos competem em vez de cooperar no SUS

“Já reservamos 20 milhões para construir o nosso hospital”, anunciou com orgulho o prefeito de uma cidade de 20 mil habitantes. É o tipo de frase que ganha aplausos em palanque — mas que escancara um problema estrutural da saúde pública brasileira: a lógica competitiva e fragmentada entre municípios, que enfraquece a regionalização do SUS e penaliza o cidadão.

A regionalização do Sistema Único de Saúde (SUS) não é detalhe burocrático. É um dos pilares do modelo, previsto em lei para garantir acesso universal, integral e equitativo, organizando serviços em redes hierarquizadas e planejadas cooperativamente. A ideia é simples e poderosa: nenhum município precisa ter tudo sozinho — e todos ganham se os recursos forem planejados em conjunto.

Mas na prática, essa integração esbarra em entraves político-administrativos bem conhecidos. Um estudo publicado na Saúde e Sociedade por Edson Coutinho da Silva e Mara Helena de Andrea Gomes mostra como a municipalização, embora importante para dar autonomia local, consolidou uma lógica de competição, não de cooperação.

“O fortalecimento da regionalização do SUS passa por maior integração de todos os municípios e, sobretudo, por uma participação menos passiva e mais engajada e propositiva.”

O estudo também destaca o fenômeno que chama de “xenofobia sanitária”: a hostilidade com que municípios tratam pacientes vindos de cidades vizinhas. Em vez de verem esses cidadãos como parte de uma rede regional, gestores locais os consideram “invasores” que sobrecarregam serviços e distorcem indicadores. Essa atitude, apontam os autores, revela o fracasso de pactuações reais e fortalece a lógica do “cada um por si”, inviabilizando o planejamento integrado.

Em vez de sentarem juntos para pactuar fluxos de atendimento, compartilhar leitos e distribuir responsabilidades, prefeitos muitas vezes correm para garantir recursos para suas obras locais, buscando prestígio eleitoral. Essa fragmentação não é só desperdício de dinheiro: cria vazios de cobertura, duplica serviços em alguns lugares e deixa outros completamente descobertos.

📌 Atribuições claras e financiamento desigual

Um ponto central que o estudo destaca é a necessidade de clarificar responsabilidades: “Os municípios são responsáveis pela gestão da atenção básica de saúde e o Estado pela atenção média e complexa.” Isso parece óbvio no papel, mas não se cumpre na prática. Municípios tentam expandir sua rede para áreas mais complexas sem ter escala ou financiamento, enquanto o Estado muitas vezes se omite, repassando migalhas.

O artigo mostra dados concretos: em Diadema, por exemplo, o Estado arcava com apenas 0,4% do financiamento da saúde, enquanto a prefeitura cobria 71% e a União 28%. Em São Caetano do Sul, a participação estadual era inferior a R$ 300 mil num orçamento de R$ 128 milhões. “Não se pode conceber um sistema de saúde regionalizado e integrado sem a presença da esfera estadual, uma vez que ela tem a responsabilidade de articulação dos municípios.”

Ou seja: sem financiamento estadual adequado, falar em regionalização é retórica vazia.

📌 Consórcios intermunicipais: parte da solução, não solução mágica

O estudo aponta os consórcios intermunicipais como ferramenta concreta para viabilizar acordos entre municípios e o Estado, superando vaidades locais e alinhamentos partidários. No Grande ABC, o Consórcio Intermunicipal atua desde os anos 1990 para mediar acordos em áreas como saúde. Mas o artigo alerta: consórcios não são mágicos — eles exigem vontade política para funcionar. “É preciso, em alguns momentos, deixar de pensar que o Estado não atende a uma solicitação da região devido ao fato de ser uma vertente partidária de oposição.”

Sem um pacto real e maduro, consórcios viram cartórios de intenções ou palcos de disputa.

📌 Desigualdades entre municípios e disputa por recursos

O estudo também revela as assimetrias entre cidades. Municípios maiores concentram infraestrutura, profissionais e poder político; menores ficam dependentes de repasses estaduais e muitas vezes não se sentem contemplados nos pactos regionais. “Nem sempre os municípios ‘menores’ se sentem contemplados nos pactos negociados.” Isso cria resistências à cooperação e incentiva cada prefeitura a pensar apenas em sua fatia. Mesmo investimentos estaduais podem acirrar disputas: um hospital novo em um município pode virar capital político local, em vez de ser pensado como equipamento regional.

📌 O papel central do Estado: articulação e regulação

O estudo é taxativo: não existe regionalização sem presença efetiva da esfera estadual. Não basta mandar remédios ou abrir hospitais geridos por organizações sociais. O Estado precisa:

✅ Financiar de forma solidária e suficiente.
✅ Liderar o processo de pactuação.
✅ Articular fluxos regulados de pacientes.
✅ Garantir mecanismos de regulação claros, com metas, indicadores e instrumentos de correção.

“O papel do Estado não é tão somente o de abrir uma organização social para tratamento da média e alta complexidade; ele deve também apoiar financeiramente os municípios, pois são eles que gerenciam os sistemas de saúde de uma região.”

📌 Regulação e governança: o nó crítico

Outro ponto central do estudo é a fragilidade da regulação regional. Em vez de metas pactuadas e instrumentos de ajuste, muitas regiões vivem na informalidade ou na improvisação. Os Colegiados de Gestão Regional (CGR), criados para mediar decisões entre municípios e Estado, muitas vezes existem só no papel ou se limitam a cumprir formalidades, sem resolver disputas reais ou garantir implementação efetiva. “O que tem impossibilitado a articulação, a pactuação e a governança na regionalização do SUS é a competição e o ‘jogo de poder’ entre os municípios.”

Regionalização não é decreto ou discurso em conferência. É política pública cooperativa que exige pactos reais, baseados em dados, prioridades coletivas e financiamento compartilhado. “Não é possível avançar enquanto os conflitos entre os municípios e entre esses e o Estado se sobrepuserem aos objetivos destacados.”

Para os autores, superar o “cada um por si” e garantir o “de todos por todos” exige maturidade política, planejamento transparente e liderança estatal.

PASSO A PASSO PARA GESTORES MUNICIPAIS

Baseado nas recomendações do estudo

1️⃣ Reconheça suas atribuições

  • Atenção básica é responsabilidade municipal.
  • Média e alta complexidade exigem pactuação com o Estado.

2️⃣ Use dados reais para planejar

  • Mapear itinerários de saúde e demandas.
  • Identificar lacunas na rede local e regional.

3️⃣ Participe ativamente dos colegiados regionais (CGR)

  • Não apenas compareça, mas proponha e pactue metas conjuntas.
  • Busque dividir responsabilidades de forma justa.

4️⃣ Fortaleça consórcios intermunicipais

  • Usar para compras conjuntas, contratação compartilhada e negociação com o Estado.
  • Garantir que decisões sejam transparentes e pactuadas.

5️⃣ Enfrente desigualdades internas

  • Reconheça que municípios menores precisam de mais apoio.
  • Negocie pactos que equilibrem oferta e demanda regionais.

6️⃣ Cobrar e cooperar com o Estado

  • Exigir repasses adequados.
  • Cobrar papel de liderança na articulação e regulação.

7️⃣ Priorize o cidadão em vez do marketing eleitoral

  • Avaliar se obras locais são realmente sustentáveis.
  • Aceitar compartilhar serviços com vizinhos para garantir acesso integral.

📌 Referência

SILVA, Edson Coutinho da; GOMES, Mara Helena de Andrea. Impasses no processo de regionalização do SUS: tramas locais. Saúde e Sociedade, São Paulo, v. 22, n. 4, p. 1106-1116, 2013. Disponível em: https://www.scielo.br/j/sausoc/a/kHZHzbhZppvn9Nv9Hbfb7HC/?lang=pt. Acesso em: 02 de jul. 2025.

Leia o estudo em:

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