Regionalização do SUS emperra no Acre e escancara limites do modelo federativo

📌 Estudo revela centralização excessiva, brigas políticas locais e normas desatualizadas como entraves para organizar serviços de saúde na Amazônia Ocidental

A promessa de organizar o Sistema Único de Saúde (SUS) em regiões articuladas, capazes de integrar serviços, compartilhar recursos e garantir acesso equitativo, patina feio na Amazônia Ocidental. É o que mostra um estudo recente publicado na Revista de APS, focado no Acre — um dos estados mais isolados e com menor densidade populacional do Brasil.

Segundo a pesquisa, conduzida por Paulo Capel Narvai (USP) e outros pesquisadores, a regionalização do SUS no Acre sofre de um mal crônico: centralização excessiva das decisões na Secretaria Estadual de Saúde, sediada em Rio Branco. Apesar de o modelo prever autonomia regional, na prática tudo se decide na capital — até mesmo a troca de uma lâmpada em um posto de saúde remoto.

“Hoje, a Região só funciona no papel. Não tem nenhuma estrutura administrativa. Tudo é feito na sede da SESACRE em Rio Branco”, resume um dos gestores ouvidos.

Uma regionalização só no mapa

O estudo concentrou-se na região de saúde Juruá, Tarauacá/Envira, com sede em Cruzeiro do Sul. Ali, apesar de um desenho formal de regiões e colegiados intergestores, a integração real inexiste. As reuniões da Comissão Intergestores Regional (CIR), dizem os entrevistados, viraram espaços para “lamentar” a falta de ação.

Um dos problemas é histórico: o Plano Diretor de Regionalização (PDR) que define responsabilidades e fluxos foi elaborado em 2002 e jamais atualizado. De lá para cá, estradas foram abertas, populações cresceram, mas o planejamento ficou parado no tempo. Resultado? Serviços fragmentados, transporte precário e custos elevados para encaminhamentos entre cidades distantes.

“Hoje temos estrada para Cruzeiro do Sul, Tarauacá, Feijó. Então, tem que atualizar a regionalização, definir o que essas unidades de saúde vão fazer”, apontou outro entrevistado.

Entraves geográficos e políticos

O Acre ainda tem desafios únicos. A logística na floresta é uma gincana. Há lugares como Jordão, que deveria integrar a Região Juruá pela lógica geográfica, mas está vinculado à Região do Baixo Acre. A mudança foi motivada por custos e praticidade: muitas vezes, o único meio viável de transporte é avião fretado — caríssimo.

Além disso, as brigas político-partidárias entre prefeituras e governo estadual azedam qualquer tentativa de gestão colaborativa. Segundo o estudo, prefeitos preferem negociar na Comissão Intergestores Bipartite (CIB) em Rio Branco, onde há mais peso político e chances de recursos, do que resolver problemas na CIR regional.

Falta empoderamento, sobra discurso

Para os pesquisadores, o modelo sofre de três fragilidades estruturais:

Regulatória: decisões centralizadas, pouca autonomia local.
Normativa: planos e instrumentos de gestão velhos ou inexistentes.
Cultural-cognitiva: ausência de identidade e poder real das regiões de saúde.

Em bom português: a regionalização no Acre ainda é um plano de PowerPoint rodando em computador velho. Os gestores locais não têm dinheiro, estrutura ou respaldo político para decidir nada relevante. E o modelo federativo brasileiro, que deveria fortalecer pactuações locais, acaba virando um emaranhado burocrático que empurra tudo para a capital.

A lição para o resto do Brasil

A situação no Acre escancara os limites do projeto de regionalização do SUS no Brasil. Embora o Decreto nº 7.508/2011 defina a Região de Saúde como um território integrado com redes de serviços e logística compartilhada, a norma não prevê flexibilizações para casos excepcionais como o da Amazônia, onde rios e estradas isolam municípios por semanas.

“O estudo mostra que é preciso flexibilidade nas regras e mais respeito às realidades locais”, apontam os autores.

Em meio a um cenário de desigualdades regionais gritantes, a experiência do Acre serve como alerta: sem repensar o desenho institucional, atualizar instrumentos de gestão e dar real autonomia às regiões de saúde, o SUS continuará reproduzindo desigualdades em vez de enfrentá-las.


📌 Fonte:
NARVAI, Paulo Capel; CARNUT, Leonardo; ZILBOVICIUS, Celso; CRUZ, Doralice Severo da; COSTA, Alexsandra Pinheiro Cavalcante. Desafios à regionalização do Sistema Único de Saúde na Amazônia Ocidental. Revista de APS, 2023; 26: e262325867. Link para o artigo


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