Uma revisão sistemática publicada na revista Ciência & Saúde Coletiva revela que, embora o processo de regionalização do Sistema Único de Saúde (SUS) seja uma realidade em todo o país, ele permanece profundamente marcado por contradições estruturais, subfinanciamento crônico e uma cultura política que privilegia a negociação sobre o planejamento.
O estudo, conduzido por Guilherme Arantes Mello, Ana Paula Chancharulo de Morais Pereira, Liza Yurie Teruya Uchimura, Fabíola Lana Iozzi, Marcelo Marcos Piva Demarzo e Ana Luiza d’Ávila Viana, revisou 26 pesquisas empíricas publicadas desde 2006, quando o chamado Pacto pela Saúde se consolidou como principal marco normativo.
Segundo os autores, o grande paradoxo é que os fóruns regionais — como os Colegiados Intergestores Regionais (CIR e CGR) — são celebrados como espaços inovadores de pactuação e governança cooperativa, mas reproduzem lógicas clientelistas, burocráticas e marcadas por interesses eleitorais locais. A promessa de articular diferentes níveis de atenção e reduzir desigualdades regionais se esbarra em entraves históricos: a fragmentação institucional, a baixa capacidade técnica dos municípios, a rotatividade de gestores e a omissão dos estados, muitas vezes descritos como parceiros ausentes ou mesmo entraves ao processo.
Em vez de planejamento integrado, o que prevalece é a barganha política. Os instrumentos criados para articular a rede — como a Programação Pactuada Integrada (PPI) ou o Plano Diretor Regional (PDR) — são frequentemente formais e simbólicos, com baixa força normativa e raramente usados para reorganizar fluxos de forma equitativa. Essa lógica de negociação política — tão enraizada na cultura institucional brasileira — perpetua um ciclo vicioso: baixa qualificação técnica, incapacidade de planejamento real e dependência crônica de arranjos improvisados.
Outro ponto crucial revelado pela revisão é o papel do setor privado. O SUS não apenas convive, mas depende estruturalmente dele, especialmente nos serviços de média e alta complexidade. Essa interdependência ocorre sem mecanismos eficazes de regulação, com contratos mal geridos e preços superiores à tabela do SUS, gerando assimetrias de poder e alimentando desigualdades. Em algumas regiões, o setor privado se fortaleceu como ator decisivo nas redes de atenção, enquanto estados e municípios fracassaram em construir unidades públicas regionais que garantissem autonomia.
O subfinanciamento aparece como variável transversal. Sem recursos novos ou previsíveis, a regionalização se limita a remanejamentos burocráticos, mantendo as desigualdades históricas no acesso aos serviços de saúde. A fragilidade técnica e financeira dos municípios os transforma em alvos fáceis para estratégias eleitoreiras e para a captura de recursos escassos, perpetuando a fragmentação do sistema.
Os pesquisadores argumentam que esse cenário não é resultado de falhas pontuais, mas de uma cultura política que historicamente subordina o planejamento à negociação, reforçando desigualdades e limitando a capacidade do Estado de implementar políticas públicas consistentes. Em outras palavras, a regionalização do SUS não falha por falta de diagnóstico ou de legislação — falha porque as soluções continuam subordinadas à lógica da barganha política.
O estudo também aponta que, apesar dos avanços institucionais — como a criação dos colegiados e contratos organizativos — o processo de regionalização atingiu um platô político. Sem novos estímulos financeiros ou técnicos, sem investimento real na profissionalização da gestão municipal e estadual, a regionalização se torna um projeto formal, mas incapaz de enfrentar o desafio central: garantir acesso equitativo e universal à saúde em um país desigual e continental.
Com isso, os autores lançam um alerta: sem uma mudança estrutural que substitua a negociação política episódica por planejamento democrático e técnico, a regionalização corre o risco de se consolidar como mais uma promessa não cumprida — e o SUS, como um sistema permanentemente ameaçado de fragmentação e desigualdade.
📖 Referência completa:
Mello GA, Pereira APCM, Uchimura LYT, Iozzi FL, Demarzo MMP, Viana ALA. O processo de regionalização do SUS: revisão sistemática. Ciência & Saúde Coletiva. 2017;22(4):1291–1310. DOI: 10.1590/1413-81232017224.26522016
