Governo digital: entre a retórica da eficiência e a realidade da exclusão

Estudo aponta que plataformas digitais e automatização da gestão pública reproduzem desigualdades, concentram poder e transformam o cidadão em dado — enquanto vendem a ilusão de modernização democrática.

Por Antonio Archangelo
Para o Portal Archa


“Transformação digital”, “simplificação de processos”, “eficiência na prestação de serviços” — o vocabulário do governo digital virou mantra nos discursos de modernização da administração pública brasileira. Mas o que há por trás da promessa de um Estado mais tecnológico, mais transparente e mais próximo do cidadão?

Um artigo publicado por Henrique de Souza Lopes na Revista de Administração Pública desmonta esse encantamento tecnocrático. Intitulado “Governo digital e a nova gestão pública: promessas, limites e ambiguidades”, o estudo propõe uma leitura crítica do avanço da digitalização estatal como parte de uma reconfiguração neoliberal da máquina pública — em que o cidadão vira consumidor de serviços precarizados e a tecnologia substitui a política.

O autor argumenta que o modelo brasileiro de governo digital está fortemente enraizado na lógica da Nova Gestão Pública (NGP). Nessa visão, o Estado assume uma postura empresarial, guiada por indicadores de desempenho e por modelos de gestão importados do setor privado. O problema é que, ao fazer isso, despolitiza o serviço público, afasta o cidadão dos processos decisórios e esconde escolhas políticas atrás de plataformas tecnológicas.


Da utopia da inovação à distopia do controle

A digitalização, longe de ser neutra, reproduz as desigualdades que já marcam a sociedade brasileira. Aplicativos públicos exigem conectividade estável, letramento digital e fluidez em sistemas — características distantes da realidade de milhões de brasileiros. Quem não consegue acessar esses serviços acaba sendo responsabilizado pela própria exclusão, como se o problema fosse pessoal, e não estrutural.

Além disso, há uma tendência crescente de personalização dos serviços públicos, como se o cidadão fosse apenas um CPF que demanda soluções individuais. Essa lógica fragmenta a noção de coletividade e fortalece a visão de que o Estado existe para atender “clientes”, e não para garantir direitos.


Plataformas públicas ou tecnocracia privatizada?

Outro ponto central da crítica é a dependência do Estado brasileiro de empresas privadas de tecnologia para operar suas plataformas. Sistemas de dados, inteligência artificial e algoritmos de decisão automatizada vêm sendo terceirizados, muitas vezes sem transparência ou fiscalização adequada. A ideia de que “tudo está no app” esconde um processo silencioso de privatização da inteligência pública.

As plataformas, nesse contexto, não são neutras. Elas codificam prioridades, impõem fluxos, excluem sujeitos. E quando algo dá errado — como um auxílio emergencial negado por erro no cadastro — o Estado se ausenta, e o cidadão é empurrado para canais automáticos sem escuta nem responsabilização.


Entre eficiência e vigilância

O discurso da eficiência costuma ser o trunfo do governo digital. Mas eficiência para quem? E a que custo? A automação pode até acelerar processos, mas também substitui critérios humanos por cálculos algorítmicos, muitas vezes opacos. A promessa de que o Estado digital seria mais transparente não se cumpre quando os sistemas usados são caixas-pretas, gerenciadas por empresas contratadas que operam sob cláusulas de sigilo comercial.

Mais grave ainda é o fato de que essa lógica amplia a vigilância sobre os cidadãos. Cada clique, cada solicitação, cada acesso vira dado armazenado, analisado e — muitas vezes — usado para decisões automatizadas sem direito ao contraditório. A digitalização do serviço público, nesse sentido, pode ser um vetor de controle e exclusão, não de inclusão.


Democracia digital precisa de política, não só de código

O estudo de Henrique de Souza Lopes propõe uma inversão fundamental: em vez de pensar a tecnologia como solução em si, é preciso repolitizar o debate sobre governo digital. Isso significa recolocar o cidadão no centro do processo, não como usuário de interface, mas como sujeito coletivo com voz sobre os rumos da administração pública.

Não se trata de rejeitar a tecnologia — mas de colocá-la a serviço da democracia, e não da lógica empresarial. Para isso, é necessário fortalecer o controle social, exigir transparência algorítmica, e garantir que o design das plataformas seja feito com participação pública — e não apenas com as startups da moda.


🧠 Leia o artigo completo:
Governo digital e a nova gestão pública: promessas, limites e ambiguidades

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