Revisão bibliográfica mostra que inteligência artificial, blockchain e big data podem modernizar a gestão, mas sem investimento, regulação e participação social, risco é ampliar desigualdades
A ideia de que novas tecnologias vão tornar o Estado mais ágil, transparente e próximo do cidadão é sedutora. A promessa de uma Administração Pública 4.0, alimentada por inteligência artificial, blockchain, big data, internet das coisas e automação, aparece em discursos de gestores e documentos oficiais como um atalho para a eficiência estatal. Mas um estudo publicado na Revista DCS alerta: sem estratégia, ética e inclusão, a digitalização pode apenas reforçar desigualdades e sofisticar velhos problemas.
Contexto: a longa marcha da “eficiência” estatal
A aposta na tecnologia como motor de modernização não é nova. Desde os anos 1990, com o avanço do gerencialismo, governos têm adotado ferramentas digitais para “enxugar” a máquina pública. De sistemas de gestão fiscal a plataformas de e-gov, a narrativa da eficiência sempre aparece atrelada à ideia de cortar custos e reduzir burocracia. O artigo, assinado por Pedro Henrique dos Santos Mendes, Adriana do Socorro Monteiro Bastos e outros sete pesquisadores, mostra que agora essa retórica ganha uma roupagem mais sofisticada, embalada por termos como “governo digital”, “Administração 4.0” e “cidades inteligentes”.
No plano prático, há exemplos interessantes: uso de IA em triagem de processos administrativos; sensores de IoT em semáforos e coleta de lixo; blockchain em licitações para reduzir corrupção. Mas, como os próprios autores lembram, muitos desses projetos ficam restritos a capitais e órgãos federais. A realidade de municípios médios e pequenos ainda é marcada por falta de infraestrutura, baixa capacitação dos servidores e fragmentação de sistemas.
Contradições: o risco da exclusão e do colonialismo digital
A pesquisa chama atenção para as contradições desse movimento. Primeiro, a digitalização pode gerar nova exclusão social: serviços exclusivamente online deixam de fora milhões de cidadãos sem internet de qualidade ou com baixa escolaridade digital. A lógica da “eficiência” corre o risco de ser apenas o espelho de desigualdades já existentes, agora mascaradas em interfaces digitais.
Segundo, há o problema do colonialismo digital: grande parte das soluções tecnológicas é importada de big techs estrangeiras. Isso coloca o Estado brasileiro não só como consumidor, mas como dependente de arquiteturas que não controla — de algoritmos opacos a servidores fora do país. Em vez de soberania digital, temos terceirização da gestão pública a empresas privadas globais.
Terceiro, surgem dilemas éticos e jurídicos. Quem responde por decisões automatizadas tomadas por IA em processos de saúde ou previdência? Como auditar algoritmos que negam benefícios ou priorizam atendimentos? O artigo lembra que ainda não existe regulação sólida sobre explicabilidade, auditabilidade e responsabilidade das ferramentas digitais usadas pelo poder público.
Comentário crítico: eficiência de quem, para quem?
No fim, a pergunta incômoda é: eficiência para quem? Um chatbot que responde rápido pode ser eficiente para o gestor que reduz filas, mas não para o cidadão que não consegue resolver o problema por falta de opção presencial. Um algoritmo que cruza dados pode acelerar decisões, mas também pode reproduzir vieses raciais e sociais invisíveis ao “cálculo neutro”.
A narrativa da “Administração Pública 4.0” funciona como um mito moderno: promete um Estado ágil, digital e inovador, mas frequentemente entrega uma burocracia turbo, igualmente desigual e mais difícil de contestar, porque agora se esconde atrás de códigos e plataformas.
O estudo da Revista DCS mostra que a tecnologia pode, sim, ser ferramenta para melhorar a gestão — desde que acompanhada de investimentos estruturais, valorização de servidores, participação social e regulação democrática. Sem isso, a digitalização é só maquiagem high-tech para velhos problemas administrativos.
Provocação final: a eficiência que importa não é a do clique rápido ou da assinatura digital, mas a da escola que funciona, do hospital que atende, do transporte que chega. E essa eficiência, sabemos bem, não se programa em algoritmo: exige política pública de verdade.
📌 Referência:
MENDES, Pedro Henrique dos Santos; BASTOS, Adriana do Socorro Monteiro; SILVA, Francisco Nascimento; SANTOS, Cláudia Luciana Tolentino; BRITO, Clara Rodrigues de; SILVA, Dina Carla Vasconcelos Sena da; MAIA, Leonardo Aguiar; GOMES, Myke Oliveira; OLIVEIRA, Samuel Faustino de. Administração pública: uma revisão bibliográfica sobre a importância das tecnologias emergentes para a eficiência da gestão estatal. Revista DCS, v. 22, n. 81, p. 01-11, ago. 2025. DOI: 10.54899/dcs.v22i81.3280.
