Pesquisa mostra que a Programação Pactuada e Integrada (PPI), peça-chave do SUS, está sem atualização na Região de Fortaleza e limita o acesso a exames e tratamentos de câncer
Um estudo publicado na Revista REGeo revela que a Programação Pactuada e Integrada (PPI), instrumento essencial do Sistema Único de Saúde (SUS), está desatualizada em todos os 44 municípios da Região de Saúde de Fortaleza. Essa falha, segundo os autores, compromete a assistência oncológica, reduz a cobertura de exames preventivos e impede a criação de indicadores para avaliar o tempo de resposta no tratamento de câncer.
Contexto: a engrenagem invisível do SUS
A PPI é, na prática, o “mapa de voo” da gestão em saúde: organiza fluxos, pactua recursos e define responsabilidades entre União, estados e municípios. Prevista desde os anos 1990 como parte da regionalização do SUS, ela deveria garantir equidade, integralidade e transparência na distribuição de serviços, especialmente os de média e alta complexidade.
No Ceará, essa pactuação é ainda mais relevante porque apenas 15,6% da população tem acesso à saúde suplementar. Ou seja, mais de 7 milhões de pessoas dependem exclusivamente do SUS — e, quando a PPI falha, o acesso se torna desigual e lento.
Contradições: direito pactuado, cuidado negado
A pesquisa-ação conduzida em parceria com a Secretaria de Saúde do Estado (SESA/CE) identificou três problemas centrais:
- Desatualização da PPI, sem incluir linhas de cuidado específicas para oncologia;
- Baixa adesão dos gestores municipais, que não revisam os dados nem atualizam pactos;
- Ausência de coordenação dedicada para monitorar e avaliar a execução da PPI.
Na prática, isso significa atraso em diagnósticos, dificuldade de acesso a consultas e exames, e sobrecarga em hospitais de referência, como o Hospital do Câncer em Fortaleza. O resultado é perverso: aumento da morbidade e mortalidade por neoplasias, especialmente em regiões críticas como o Centro Sul, Sertão Central e Vale do Jaguaribe.
Os dados são contundentes: entre 2000 e 2023, o Ceará registrou 184 mil óbitos por câncer, com pico em 2023 (10.217 mortes, taxa de 116,27 por 100 mil habitantes). Em municípios como Fortaleza, Caucaia e Juazeiro do Norte, concentram-se quase 50% dessas mortes.
Risco estrutural: desigualdade territorial e dependência espacial
A análise espacial feita pelos autores mostra que a mortalidade por câncer no Ceará não é aleatória: forma clusters geográficos de alta incidência, em geral coincidentes com áreas de maior vulnerabilidade socioeconômica. Em 2023, a Macrorregião de Fortaleza registrou as taxas mais críticas, chegando a 129 mortes por 100 mil habitantes na ADS Fortaleza.
Esse padrão indica que a ausência de uma PPI atualizada amplia desigualdades regionais: enquanto polos urbanos concentram recursos, municípios menores ficam à deriva, forçando deslocamentos de pacientes e famílias em busca de tratamento.
Comentário crítico: sem pacto, não há integralidade
A conclusão é dura: sem atualização e monitoramento, a PPI deixa de ser instrumento de planejamento e se transforma em ficção administrativa. Pactos existem no papel, mas não chegam ao paciente que espera meses por uma biópsia ou viagem ao centro oncológico.
Provocação final: a integralidade do SUS não se garante apenas por decreto — ela exige pactos vivos, revisados e fiscalizados. Deixar a PPI desatualizada é naturalizar a desigualdade em saúde, transformando um instrumento de garantia em mais um gargalo da burocracia sanitária.
📌 Referência:
MILHOME, Nathalie Costa; SANTOS, Marcelo Davi; LOBO, Pryscila Gomes; ARAUJO, Marcus Vinicius Adriano; PORDEUS, Marcel Pereira; CARDOSO, Rebeca de Oliveira; OLIVEIRA, Camila Marques da Silva. A Programação Pactuada e Integrada (PPI) como instrumento de garantia da integralidade da atenção à saúde no SUS: um estudo de caso no aprimoramento da assistência oncológica na Região de Saúde de Fortaleza, Ceará. Revista REGeo, v. 16, n. 4, p. 1-32, 2025. DOI: 10.56238/revgeov16n4-026.
