Em um momento em que a educação brasileira enfrenta disputas sobre currículo, identidade e formas de conhecimento, um estudo recente publicado na Revista Helius Sobral lança luz sobre um território onde aprender matemática não se limita a fórmulas, sequências e técnicas de repetição. No artigo “Matemáticas: exercícios cartográficos decoloniais”, Isis Maria de Paula Oliveira e Michela Tuchapeski da Silva exploram os modos de aprender que emergem no Centro de Educação e Cultura Indígena (CECI) do Jaraguá, território Guarani Mbya situado na zona norte de São Paulo. Ali, a matemática não é um conteúdo a ser decorado — mas uma experiência viva, relacional e profundamente atravessada pelo ambiente, pelos corpos e pelos modos de existir da comunidade.
O estudo parte da filosofia da diferença e de metodologias cartográficas para tensionar o que as autoras chamam de “matemática régia”, nome dado à forma hegemônica e ocidental de ensinar o conteúdo escolar. Em vez da sequência previsível dos livros didáticos, o que aparece no CECI é uma matemática que brota do cotidiano: do dominó reinventado coletivamente, das missangas que se transformam em narrativas, da corda que pula ritmos do corpo, do futebol de mesa que vira exercício de soma, pacto e cooperação. Nada disso cabe em um quadro branco — e é justamente aí que reside sua potência.
Para Oliveira e Silva, a cartografia funciona como um método para desnaturalizar aquilo que a escola costuma tomar como único caminho possível. Ao acompanhar crianças e educadores por meio de uma escuta atenta e sensível, as autoras revelam que o aprender não surge da aplicação de técnicas, mas do encontro com problemas, afetos e relações. É nas dobras do cotidiano — no fio que se rompe, na missanga que cai, na peça que falta, na criança que pergunta “temos quanto?” e não “eu tenho quanto?” — que se desenham outras políticas cognitivas.
O estudo aponta que a matemática ensinada na escola ocidental, estruturada na recognição, tende a apagar saberes que não cabem nas suas molduras. Ao trabalhar com o conceito de devir, retomado de Deleuze e Guattari, as autoras argumentam que o aprender matemáticas — no plural — é um processo inventivo, sempre inacabado, que envolve criar mundos e não apenas responder a exercícios. No CECI, aprender deixa de ser uma tarefa e se torna um acontecimento.
Ao deslocar o olhar para os modos de aprender que se exprimem no território indígena, o artigo contesta a monocultura do pensamento matemático e reivindica a legitimidade de outras formas de conhecer. Trata-se, portanto, de uma crítica contundente à ideia de que a matemática curricular é universal, neutra e superior. O CECI Jaraguá aparece como um espaço em que práticas educativas rompem com padrões hegemônicos, abrindo brechas para processos cognitivos sensíveis, coletivos e plurais.
Mais do que “ensinar matemática”, o que emerge do estudo é a defesa de que a escola — indígena ou não — pode ser um lugar onde aprender envolve experimentar, fabular, problematizar e compor com o mundo. Um lugar em que a matemática deixa de ser um conjunto de regras e passa a ser uma prática de criação. Ao registrar essas cenas, o artigo convida educadores, pesquisadores e formuladores de políticas a repensarem a própria noção de aprendizagem, recolocando o corpo, o território e a diferença no centro do processo educativo.
Referência
OLIVEIRA, Isis Maria de Paula; SILVA, Michela Tuchapeski da. Matemáticas: exercícios cartográficos decoloniais. Revista Helius Sobral, v. 6, n. 1, p. 217-232, 2025. Disponível no arquivo cedido pelo autor. 17.+ok+OLIVEIRA,+I.M.P.+Matemát…
