O sistema brasileiro de pagamento de precatórios — dívidas que o poder público é obrigado a pagar após decisões judiciais definitivas — está cada vez mais distante da ideia de justiça. É o que mostra o artigo “Análise da dívida pública de precatórios e sua justiça conforme a teoria de John Rawls”, de autoria da jurista e pesquisadora Stéphanie Luíse Pagel Scharf Mette, publicado em 2025.
A pesquisa parte da teoria do filósofo John Rawls, um dos principais pensadores políticos do século XX, para avaliar se o modelo brasileiro de precatórios respeita princípios básicos como igualdade, equidade e proteção dos mais vulneráveis. A conclusão é direta: do jeito que funciona hoje, o sistema favorece o Estado inadimplente e penaliza cidadãos que dependem desses valores para sobreviver.
Criados para organizar e tornar impessoal o pagamento das dívidas judiciais do poder público, os precatórios foram incorporados à Constituição com o objetivo de moralizar a relação entre Estado e credores. Na prática, porém, sucessivas mudanças constitucionais transformaram o instituto em um mecanismo de postergação quase permanente das dívidas. Há casos em que credores esperam décadas para receber valores reconhecidos pela Justiça.
O artigo mostra que, ao longo dos anos, emendas constitucionais criaram parcelamentos, regimes especiais, limites orçamentários e novas regras de correção monetária que reduzem o valor real das dívidas. Em muitos períodos, os índices usados não acompanharam a inflação, fazendo com que o dinheiro perdesse valor enquanto o credor aguardava. O resultado é um cenário de insegurança jurídica e perda patrimonial, especialmente para servidores públicos, aposentados e pessoas desapropriadas pelo Estado.
Ao dialogar com a teoria de Rawls, o estudo destaca dois princípios centrais: o da igualdade e o da diferença. O primeiro exige que as regras sejam aplicadas de forma justa e igual para todos. O segundo admite desigualdades apenas quando elas beneficiam quem está em pior situação. Segundo a autora, o sistema de precatórios brasileiro viola ambos. O Estado, que deveria dar exemplo no cumprimento das leis, passa a ter privilégios que nenhum cidadão ou empresa privada teria, enquanto o credor arca com atrasos, mudanças constantes nas regras e altos custos técnicos para acompanhar seus próprios créditos.
Além disso, o acesso à Justiça e ao próprio sistema de precatórios não é igual para todos. Quem tem mais recursos consegue contratar especialistas, recorrer às instâncias superiores e acompanhar as constantes alterações legais. Já os credores mais vulneráveis enfrentam dificuldades para entender cálculos, acompanhar editais e lidar com normas que mudam ao longo do tempo, o que aprofunda desigualdades que o sistema deveria combater.
O artigo também chama atenção para o crescimento acelerado da dívida pública de precatórios. Apenas no âmbito da União, os valores praticamente dobraram em poucos anos, enquanto novas moratórias seguem sendo discutidas no Congresso Nacional. Para a autora, esse cenário incentiva a irresponsabilidade fiscal, já que gestores sabem que as dívidas podem ser empurradas para governos futuros, sem consequências imediatas.
Ao final, a pesquisa conclui que, se a Constituição fosse pensada a partir de um debate real entre cidadãos em condições de igualdade — como propõe Rawls — o modelo atual de precatórios dificilmente seria escolhido. Embora o instituto tenha nascido com objetivos legítimos, sua aplicação prática se afastou da ideia de justiça como equidade, transformando o Estado, muitas vezes, em agente produtor de injustiça social.
Referência
METTE, Stéphanie Luíse Pagel Scharf. Análise da dívida pública de precatórios e sua justiça conforme a teoria de John Rawls. Revista Grifos, v. 36, n. 64, 2025. DOI: 10.22295/grifos.2025.v36.n64.8157.
