A água é um bem essencial à vida. Não há dúvidas sobre isso. No entanto, muitos gestores públicos e prefeitos parecem tratar esse recurso como uma mercadoria qualquer, submetida às forças do mercado e às suas leis de oferta e demanda. Ao verem a água como uma simples rubrica orçamentária ou ativo comercial, esses gestores desconsideram não só os princípios básicos da dignidade humana, mas também a função social e pública que a água deve exercer em uma sociedade democrática.
O que esses gestores não parecem compreender é que a água não é apenas um insumo ou um recurso qualquer a ser explorado com vistas ao lucro. A água é um direito humano fundamental, consagrado em diversas constituições e tratados internacionais, incluindo a Declaração Universal dos Direitos Humanos da ONU. Ao privatizar os serviços de coleta, tratamento e distribuição de água, esses prefeitos estão não apenas entregando um bem público ao mercado, mas também comprometendo o acesso universal e igualitário a esse recurso vital, uma das bases para a justiça social.
Esses gestores não podem alegar desconhecimento sobre o impacto social e humano de suas decisões. Privatizar os serviços de água, impondo tarifas altas que tornam o acesso a esse bem vital um privilégio de poucos, é uma violação clara dos direitos básicos dos cidadãos. Quando a água se transforma em uma mercadoria, aqueles que não podem pagar ficam à margem da sociedade. São excluídos não só do acesso à água potável, mas também de uma vida digna. Esses prefeitos, ao se renderem aos encantos do mercado e das promessas de eficiência empresarial, estão criando uma sociedade de castas, onde a exclusão social é incentivada e institucionalizada.
A desculpa de que a privatização é necessária para garantir a sustentabilidade financeira ou a eficiência operacional dos serviços de água é uma falácia. Privatizar os serviços públicos não resolve problemas estruturais, mas cria novos. De fato, a experiência de outros países e cidades ao redor do mundo mostra que, ao transferir o controle de um bem essencial para empresas privadas, as tarifas aumentam, a qualidade do serviço não melhora substancialmente e, no final das contas, a população mais pobre paga o preço da mercantilização da água. O que esses gestores estão fazendo é entregar, nas mãos de grandes corporações, o controle sobre algo que deveria ser um bem comum e inalienável.
Um exemplo emblemático da falácia da privatização pode ser observado em Cochabamba, na Bolívia, onde, no final da década de 1990, a água foi privatizada e o controle entregue à multinacional Bechtel. Rapidamente, as tarifas dispararam, tornando a água inacessível para grande parte da população. A revolta popular, conhecida como a Guerra da Água, foi um dos maiores protestos contra a privatização da água no mundo, culminando na reversão do contrato e na retomada do controle público sobre os serviços de água. Este caso deixa claro como a privatização pode resultar em injustiça social e em um desrespeito absoluto aos direitos humanos mais básicos.
Outro exemplo significativo vem do Reino Unido, onde, em 1989, o governo privatizou os serviços de abastecimento de água. As promessas de eficiência e redução de custos não se concretizaram. Pelo contrário, as tarifas aumentaram substancialmente, sem que a qualidade do serviço fosse aprimorada de maneira significativa. Empresas como a Thames Water e a Severn Trent focaram na maximização dos lucros, enquanto os cidadãos, principalmente os mais pobres, continuaram a sofrer com o aumento das tarifas. Estudo após estudo tem mostrado que a privatização não resultou nas melhorias prometidas, e os preços continuaram a subir, impactando especialmente as populações mais vulneráveis.
Nos Estados Unidos, em Flint, Michigan, um caso de gestão pública negligente, misturado com uma privatização parcial, resultou em uma crise de saúde pública sem precedentes. A cidade, ao tentar economizar dinheiro, alterou a fonte de abastecimento de água e negligenciou o tratamento adequado, o que levou à contaminação da água com chumbo, afetando milhares de cidadãos. A privatização dos serviços, aliada à falta de supervisão pública e ao corte de custos em áreas essenciais, contribuiu para essa tragédia. Esse episódio, embora não tenha sido uma privatização no sentido estrito, é um exemplo claro de como a falta de responsabilidade pública, em nome da redução de custos, pode resultar em um desastre humanitário.
Esses exemplos não são isolados e demonstram que, quando a água é tratada como mercadoria, os direitos humanos ficam em risco. As privatizações, longe de oferecerem soluções mágicas, revelam uma profunda falta de compromisso com os cidadãos e com a justiça social. Não é só a lógica de mercado que falha, mas também a falácia de que a gestão privada é mais eficiente. Deixar um órgão público minguar, sucatear e se enfraquecer para criar a falsa necessidade de intervenção privada ou privatização é uma manobra claramente manipuladora de gestores sem compromisso com o bem público. Essa falácia, frequentemente usada como justificativa para a privatização de serviços essenciais, não só fere os princípios da boa governança, como também ignora o fato de que a responsabilidade do Estado é justamente garantir a universalização do acesso a direitos essenciais, como a água.
Quando esses prefeitos e gestores tratam a água como mercadoria, estão agindo de maneira irresponsável e antiética. Eles estão ignorando o compromisso do Estado com a igualdade de direitos e com o bem-estar coletivo. Quando fazem da água uma simples linha de orçamento, estão, na prática, desconsiderando o dever de garantir direitos básicos e fundamentais aos cidadãos. A água não é um produto de prateleira; ela é a base da saúde pública, da educação, do trabalho, da alimentação e do próprio bem-estar. Torná-la inacessível para a maioria é desmantelar a própria estrutura da sociedade democrática.
A privatização da água não é uma solução para os problemas de gestão. Pelo contrário, é uma falácia que, ao ser aplicada, resulta em mais desigualdade e exclusão. O Estado tem a obrigação de garantir que todos, sem exceção, tenham acesso à água potável, saudável e acessível. A água é um direito humano, e tratá-la como mercadoria, sujeita ao lucro privado, é uma afronta aos princípios mais fundamentais de justiça social e dignidade humana. Deixar a gestão pública minguar e sucatear para justificar a privatização não é apenas uma escolha equivocada, mas uma escolha cruel que prejudica aqueles que mais precisam. A água é um bem comum, e sua gestão deve sempre estar sob a responsabilidade do Estado, comprometido com a igualdade de direitos e com o bem-estar da população.
Antonio Archangelo é gestor, professor a autor do livro “Inovação no Setor Público”.
