O estudo genético brasileiro escancara violências coloniais, mas pode ser instrumentalizado para reforçar mitos igualitaristas e inoperantes sobre identidade nacional.
Por Antonio Archangelo. | Portal Archa | Rio Claro (SP)
Coluna editorial
Essa semana deparei-me com o colapso de publicações sobre o avanço das ciências genéticas, como demonstrado pelo projeto “DNA do Brasil”, que trouxe à baila dados atordoantes sobre a constituição biológica da população brasileira: 59% de ancestralidade europeia, 27% africana e apenas 13% indígena. No entanto, mais do que percentuais, esses números carregam camadas históricas de violência, estupros sistemáticos, genocídios e apagamentos. Como nos alerta Kabengele Munanga (2003), a raça não existe biologicamente, mas segue operando no imaginário social e nos sistemas de domínio.
I. A falsa celebração da diversidade genética
Transformar um estudo sobre diversidade genética em uma peça publicitária sobre orgulho nacional é flertar com o mito da democracia racial. A miscigenação, apresentada como traço de riqueza e tolerância, é, na verdade, fruto de relações coloniais violentas. Como denuncia Munanga, a miscigenação não apagou o racismo; ela o sofisticou.
II. O racismo como estrutura e não como exceção
Ainda que as ciências biológicas tenham demonstrado a ineficácia do conceito de raça para explicar a diversidade humana, sua permanência como “raça social” é indiscutível. A classificação hierarquizada entre brancos, negros e “amarelos” persiste não por base científica, mas por interesses históricos de domínio e exclusão. O que os dados genéticos expõem é a brutalidade dessas relações, como a predominância de mulheres negras e indígenas na linhagem genética feminina brasileira (77%), resultado de estupros coloniais.
III. Racismo científico e tecnocracia da exclusão
A ciência que hoje denuncia o racismo é a mesma que, por muito tempo, o fundamentou. Como lembra Munanga, a raciologia foi usada para legitimar escravidões, genocídios e eugenia. Hoje, a mesma ciência pode voltar a ser instrumentalizada, se descolada de uma leitura histórica crítica. O risco é transformar dados em decoração midiática, esvaziando seu potencial de denúncia e de reparação.
IV. Democracia racial: um mito funcional ao silenciamento
O mito da democracia racial é, talvez, uma das construções ideológicas mais perversas da história brasileira. Articulado magistralmente em Casa-Grande & Senzala (1933), de Gilberto Freyre — e não sem conivência de parte significativa da intelectualidade brasileira do século XX —, esse discurso disfarçou uma estrutura de dominação violenta com o véu de uma suposta harmonia racial.
Freyre romantizou o estupro colonial como “formação do povo brasileiro” e traduziu a brutalidade da casa-grande como convivência cordial entre senhores e escravizados. Ao fazer isso, prestou um desserviço histórico que ecoa até hoje: a celebração de uma mestiçagem alegre que, na verdade, foi construída sobre estupros, escravidão e genocídio.
Como bem sintetizou Lélia Gonzalez, o mito da democracia racial é um “mecanismo de silenciamento das denúncias de racismo”, e seu efeito perverso é responsabilizar os negros por sua própria marginalização. Já Abdias do Nascimento advertia: “o racismo no Brasil é sofisticado porque se apresenta como se não existisse”.
A persistência dessa narrativa em manuais escolares, discursos políticos e nas falas cotidianas de parte da população é o maior indício de que o Brasil ainda se recusa a encarar seu racismo como estrutura. Em um país que nunca teve políticas sérias de reparação, que banaliza o epistemicídio e que tenta extinguir a luta quilombola e indígena sob o pretexto da “igualdade”, o mito da democracia racial serve como cortina de fumaça. Não temos, sequer, uma democracia plena — quanto mais racial.
V. Por uma ciência comprometida com a reparação
Uma ciência comprometida com a verdade não se limita a descrever dados: ela os interpreta, denuncia e os coloca a serviço da justiça. O projeto DNA do Brasil precisa ser lido como prova material das violências estruturais que moldaram a nação, e não como propaganda da mestiçagem alegre. Os dados gritam por políticas de reparação histórica, demarcação de territórios, reconhecimento das culturas originárias e fim do epistemicídio.
O sangue que corre em nosso DNA é o mesmo que escorreu de corpos violados, escravizados e silenciados. Celebrar a diversidade sem recontar essa história é trair os dados e perpetuar o silenciamento. A ciência deve ser ponte entre o passado violado e um futuro justo. Como nos ensina Munanga, reconhecer a diversidade é também reconhecer a desigualdade que a produziu.
Referências
FREYRE, Gilberto. Casa-grande & senzala. 48. ed. São Paulo: Global, 2003.
GONZALEZ, Lélia. Por um feminismo afro-latino-americano. Rio de Janeiro: Zahar, 2020.
MUNANGA, Kabengele. Rediscutindo a mestiçagem no Brasil: identidade nacional versus identidade negra. Petrópolis: Vozes, 2003.
NASCIMENTO, Abdias do. O genocídio do negro brasileiro: processo de um racismo mascarado. 3. ed. São Paulo: Perspectiva, 2016.
RIBEIRO, Djamila. O que é lugar de fala? Belo Horizonte: Letramento, 2017.
*O autor é especialista em Educação Indígena e doutorando em Educação pela Unesp.
