Orçamento de Fachada: Como falar em “enxugar” sem ter a chave do cofre?

LOAs copiadas, autarquias sufocadas e uma gestão que improvisa com base na ignorância fiscal: por dentro do colapso da execução orçamentária de cidades de médio e pequeno porte

Desde 2007, acompanho de maneira sistemática o setor público municipal. Ao longo desses anos, ficou claro que há um modus operandi crônico de desrespeito à estrutura legal e técnica da contabilidade pública. Em muitos municípios, o que temos é um planejamento orçamentário que se aproxima mais de um simulacro institucional do que de um instrumento real de gestão.

A primeira confusão que precisa ser desfeita é entre crédito orçamentário e dinheiro disponível. Nem todo crédito representa recurso financeiro em caixa. O orçamento público não é um cofre — ele é uma autorização legal baseada em estimativa de receita. Quando se afirma que “há 300 milhões no orçamento e não se gasta”, incorre-se em erro técnico e político grave.

O setor público opera com base na limitação de despesa e na estimativa de receita. Em cidades como Rio Claro (SP), por exemplo, o orçamento tem sido reiteradamente aprovado com base em colagens de anos anteriores. As unidades orçamentárias e os programas seguem o modelo do “cumpre-se a lei”, mas perdem a conexão com a realidade municipal. O orçamento, assim, não dialoga com o plano de governo eleito nem com as prioridades locais.

As peças legais — PPA (Plano Plurianual), LDO (Lei de Diretrizes Orçamentárias) e LOA (Lei Orçamentária Anual) — são feitas por obrigação legal, não por convicção técnica. Isso gera um orçamento aprovado pela Câmara, mas sem lastro com a execução real.

O resultado é uma profunda violação do princípio da descentralização orçamentária e administrativa. Apesar da existência de secretarias com seus respectivos orçamentos, a chave real do cofre está com o secretário de Finanças, não com o prefeito.

Esse secretário exerce a função constante de remanejar créditos entre órgãos, unidades e programas. Essa prática, visível nos Diários Oficiais do Município, revela a fragilidade do planejamento inicial.

Esse cenário também expõe o completo despreparo técnico de quem defende “corte de gastos” ou “enxugamento da máquina” como solução. Tais termos são, nesse contexto, apenas retórica populista e cortina de fumaça para a incompetência fiscal e a falência da gestão por resultados.

O Tribunal de Contas do Estado de São Paulo (TCE-SP) tem apontado há anos a desconexão entre planejamento, execução e controle. A situação é ainda mais grave no tratamento dado às autarquias e fundações municipais.

Essas entidades, por lei, deveriam ter autonomia orçamentária e financeira (art. 37, XIX da CF/88). No entanto, em Rio Claro, por exemplo, até 2020 operavam sem repasses fixos, em afronta ao art. 8º, §1º da LRF, que exige a liberação regular de recursos às unidades gestoras. https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/LCP/Lcp101.htm#art8

O caso da Fundação Municipal de Saúde e do DAAE é emblemático. A tentativa recente de transformar o DAAE em empresa pública parece uma manobra jurídica para ampliar margem de crédito orçamentário, ou seja, criar lastro para despesas que o orçamento técnico não suporta.

Confunde-se ainda gasto com despesa. Nem todo gasto se converte em despesa orçamentária formal. A despesa, conforme a Lei nº 4.320/64, precisa ser empenhada, liquidada e paga. Sem isso, não há execução real. https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l4320.htm

Durante minha atuação na Fundação Municipal de Saúde, vi de perto diretores financeiros tendo que “caçar” créditos não utilizados em outras unidades para pagar de ataduras a combustível.

Esse improviso não permite falar em tecnocracia ou austeridade. É uma prática incompatível com qualquer modelo racional de gestão pública.

Enquanto isso, o atual prefeito, formado em Direito, insiste em discursos sobre contenção salarial, alegando que há professores ganhando como prefeito. Essa afirmação é populista e ignora a estrutura real do orçamento municipal, que é subfinanciado e tecnicamente inválido em sua execução.

Em momentos pontuais, como no recente período eleitoral, houve tentativa de cancelamento de restos a pagar — o que chegou a sugerir que a gravidade do problema fora detectada. No entanto, o modus operandi segue: sem rastreabilidade orçamentária, sem descentralização efetiva, com o orçamento ainda como peça de ficção.

Municípios que superaram esse modelo adotaram medidas técnicas, como:

  • Jundiaí/SP: comitês intersecretariais de controle orçamentário com indicadores de desempenho (KPIs);
  • Maricá/RJ: descentralização com cotas mensais automáticas às secretarias e fundações;
  • Uberlândia/MG: matriz digital de responsabilidade orçamentária com transparência em tempo real por unidade gestora.

As cidades de médio porte precisam com urgência de uma auditoria independente sobre a qualidade e a coerência do seu orçamento, não apenas sobre o balanço das contas. Até lá, seguimos reféns de uma administração que improvisa e se sustenta no apagão técnico e sem controle e fiscalização legislativa adequada.


Por Antonio Archangelo
Editor do Portal Archa | Mestre em Gestão da Clínica | Especialista em Direito Público | Doutorando em Educação Escolar (UNESP)

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