Nos bastidores da tecnocracia paulista, longe dos holofotes que celebram rankings internacionais e discursos de “inovacao educacional”, se desenha uma das mais silenciosas e brutais ofensivas contra o direito à educação no Brasil contemporâneo. Em pleno 2025, o estado de São Paulo se consolida não como vanguarda, mas como bastião da necropolítica educacional, termo cunhado por Achille Mbembe para descrever o poder que administra a morte – aqui, a morte simbólica do direito ao pensamento crítico, à escola como espaço de autonomia e à educação como projeto de emancipação.
Desde que a Lei do Piso Nacional do Magistério (Lei nº 11.738/2008) passou a vigorar, emergiu uma ofensiva articulada para impedir que ela fosse efetivamente cumprida. Governadores e prefeitos passaram a burlá-la com abonos não incorporados aos vencimentos, como acontece até hoje em Rio Claro e em outros 400 municípios paulistas. No plano federal, o governo Bolsonaro radicalizou a estratégia: substituiu o debate educacional por guerra cultural. Projetos como o “Escola Sem Partido” tentaram criminalizar a liberdade de cátedra. Em São Paulo, a Assembleia Legislativa (ALESP) foi palco de proposições que impunham censura pedagógica e fiscalização do conteúdo das aulas.
Sob o pretexto de “gestão eficiente”, o Estado de São Paulo implementou uma pedagogia algorítmica. As chamadas BIAs – Boletins de Indicadores da Aprendizagem passaram a monitorar o desempenho dos alunos com base em instrumentos padronizados, penalizando escolas e docentes que não “entregassem resultados”. As escolas se tornaram centros de produção de métricas. A Resolução SE 83/2025 passou a prever “perseguição”coação” de professores, além do clima de perseguição e substituição de diretores por desempenho insatisfatório nos indicadores. Trata-se de um modelo fabril, onde o professor é um operário precarizado sob vigilância constante.
Na esteira da reforma empresarial da educação, escolas estaduais foram obrigadas a utilizar conteúdos prontos e plataformas como o Centro de Mídias SP. Professores tornaram-se aplicadores de slides. Em diversos municípios, apostilas privadas substituem livros públicos. Isso se alinha ao modelo denunciado por Christian Laval e Pierre Dardot: a “razão neoliberal” aplicada à educação.
Em paralelo, parcerias público-privadas ganham espaço sem transparência nem debate com as comunidades escolares. Fundos como o Fundeb são redirecionados para contratação de serviços, não para estrutura ou carreira docente.
De acordo com o Censo Escolar 2023, menos de 40% das escolas paulistas possuem bibliotecas. Apenas 12,6% têm laboratório de ciências. Em municípios como Mogi das Cruzes, Itapecerica e Piracicaba, escolas funcionam com infiltrações, sem AVCB, com cozinhas interditadas pela vigilância sanitária.
O Estado não apenas tolera essa situação, como a transforma em regra. A falta de alvarás, de rede de esgoto, de quadras esportivas ou de laboratórios é naturalizada. Trata-se de um abandono planejado, como afirmava Darcy Ribeiro: “a crise da educação não é uma crise, é um projeto”.
A necropolítica à brasileira não mata com fuzil, mas com metas, censuras, salas de aula superlotadas e falta de perspectiva. Ela se manifesta na pressão para não participar de greves, na repressão à liberdade de expressão dos educadores e na ameaça constante de perder o cargo.
Não é apenas uma política pública equivocada. É um projeto de poder que quer uma escola funcional, domesticada e silenciosa. Um projeto que está em curso, com aliados em câmaras municipais, nas redes sociais e nas redações que normalizam a miséria pedagógica.
A resistência precisa ser articulada, plural e firme. A escola pública não pode ser transformada em linha de montagem. Precisamos retomar o sentido pedagógico do espaço escolar, a centralidade da escuta, da liberdade pedagógica e do pensamento crítico.
Como dizia Paulo Freire, “se a educação sozinha não transforma a sociedade, sem ela tampouco a sociedade muda”. E não há mudança sem educadores respeitados, sem escolas seguras, sem currículos democráticos.
Referências:
- Lei do Piso Nacional do Magistério
- Projeto Escola Sem Partido – PL 867/2015
- Resolução SE 72/2023
- Centro de Mídias SP
- Fundeb – Portal MEC
- Censo Escolar 2023 – INEP
- Análise – Todos Pela Educação
- Repressão à greve docente – El País Brasil
- Censura em sala de aula – Repórter Brasil
- Mbembe, A. Necropolítica
- Dardot, Laval. A nova razão do mundo
- Paulo Freire – Pensador
Antonio Archangelo é jornalista, doutorando em Educação e professor da educação pública em São Paulo. Criador do Método Camões®, atua na defesa da escola como espaço de emancipação, arte e resistência.
