Normalizar o quê, exatamente?

Por Antonio Archangelo
Professor, jornalista e pesquisador em educação

Na manchete deste domingo do Jornal Cidade, a Prefeitura de Rio Claro promete que vai “normalizar” a Educação. A palavra escolhida é tudo — e diz mais do que parece. Em vez de reconhecer a crise estrutural que atinge a rede municipal de ensino, o poder público prefere prometer uma “normalização”. O termo, tomado assim, como algo que se apresenta neutro, técnico e funcional, é na verdade um marcador ideológico profundo.

Foucault já nos alertava que “normalizar” não é simplesmente corrigir: é enquadrar, vigiar e punir. É fazer funcionar dentro de um modelo pré-estabelecido de conduta, comportamento e discurso. Quando se diz que a escola será “normalizada”, o que se está afirmando — sem dizer — é que a exceção que escandalizou a opinião pública (a ausência de papel higiênico, a denúncia dos professores, a investigação do MP) será silenciada por meio da reinstituição da norma. A exceção será apagada. O ruído será calado. O grito dos corpos pedagógicos será absorvido pelo discurso tecnocrático da gestão pública.

Mas o que é essa “normalidade” que tanto se quer restaurar?

A normalidade da escola municipal de Rio Claro é a precarização crônica, o sucateamento lento, a escassez tratada como rotina, o esgotamento dos professores e o abandono institucional. É o necropoder cotidiano disfarçado de planilha e organograma. Como diria Guattari, trata-se de uma máquina social de produção de subjetividade disciplinada, onde até a indignação precisa ser administrada. Ao prometer “normalizar”, o Executivo local se recusa a romper com a lógica da domesticação e aposta na reprodução daquilo que sempre foi: um sistema que funciona mal, mas funciona o suficiente para não incomodar os que mandam.

Pior: se hoje faltam insumos básicos, amanhã pode faltar ainda mais — mas de forma silenciosa. O risco de “normalizar” é tornar o absurdo invisível. E é isso que está em jogo.

Não queremos normalização. Queremos ruptura com o modelo de abandono. Queremos investimento, transparência, justiça orçamentária. Queremos professores com condições de trabalho dignas, alunos com acesso a materiais de qualidade, escolas que acolham e não aprisionem.

Se o que se quer é normalizar, que se saiba: a norma está doente. E manter a educação funcionando sob esses padrões não é uma solução — é um crime.

Antes de terminar esta reflexão, registro que o argumento governista de que era “mentira” que estava faltando itens na rede municipal caiu por terra. Como dizia minha vó: mentira tem perna curta…

Referências

FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir: nascimento da prisão. Petrópolis: Vozes, 2014.

FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder. Rio de Janeiro: Graal, 1999.

GUATTARI, Félix; ROLNIK, Suely. Micropolítica: cartografias do desejo. Petrópolis: Vozes, 1996.

MBEMBE, Achille. Necropolítica. São Paulo: N-1 Edições, 2018.

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