Quando a escola é punida pelo fracasso que não criou

Por Antonio Archangelo

Tiraram os celulares da sala de aula. Agora, na caixa preta, os carrascos são um a um excluídos pelo sistema. Essa frase resume o ciclo perverso da pedagogia do controle: aquilo que foi desenhado para vigiar os corpos dissidentes volta-se contra os próprios operadores da máquina. A lógica que proíbe a autoria estudantil é a mesma que, silenciosamente, demite, pune e silencia os educadores que não performam nos algoritmos da eficiência.

A demissão de 19 professores da Escola Estadual José Vieira de Morais, em São Paulo, e a exoneração da diretora Daniele Moschioni da Escola Estadual Prof. Willian Rodrigues Rebuá, em Carapicuíba, evidenciam um novo estágio da política educacional paulista: a utilização da avaliação como instrumento de hierarquização, punição e deslocamento de responsabilidades sistêmicas para os indivíduos da comunidade escolar. Essa política de responsabilização se ancora em lógicas tecnocráticas que instrumentalizam a avaliação como controle, e não como mediação pedagógica.

Nos dois episódios, utilizou-se de resultados de desempenho, metas e indicadores administrativos como justificativa para desligamentos sumários de educadores com reconhecimento comunitário e, em alguns casos, avaliações internas positivas. O que une esses casos — e os protestos violentamente reprimidos na capital paulista — é a instrumentalização da avaliação como política de controle, descolada de sua função formativa e pedagógica, e reconectada a uma lógica de produtividade, eficiência e obediência.

Segundo Silva e Gomes (2018), a avaliação educacional não é um campo neutro ou técnico, mas sim um espaço de disputa política e epistemológica. O artigo sistematiza a trajetória histórica da avaliação em quatro fases principais: mensuração (1890–1930), avaliação por objetivos (1930–1957), avaliação como juízo de valor (1957–1973) e avaliação dialógica e participativa (pós-1973). Na prática educacional atual, especialmente em redes estaduais como a paulista, essas fases coexistem em um campo híbrido. Mesmo com discursos que falam em “avaliação 360º”, participação ou gestão democrática, as práticas reais são muitas vezes herdeiras do modelo tecnocrático e gerencialista da mensuração e da avaliação por metas.

Tanto professores quanto diretores passaram a ser avaliados com base em indicadores quantitativos descontextualizados, oriundos de provas externas, taxas de aprovação ou frequência, muitas vezes descoladas da realidade concreta das escolas. O resultado é a transposição da responsabilidade pelo insucesso educacional do Estado para o agente escolar, criando uma cadeia de culpabilização que pune justamente aqueles que enfrentam as precariedades do sistema.

Como diria Foucault (1999), a avaliação aqui opera como dispositivo disciplinar e normalizador. Ela não serve apenas para identificar lacunas, mas para produzir sujeitos conformes à lógica da obediência. A “escola eficaz” torna-se aquela que entrega resultados, mesmo em contextos de desigualdade brutal, evasão, desnutrição, racismo institucional e abandono orçamentário. Aqueles que denunciam, resistem ou não cumprem o roteiro são descartáveis.

Essas lógicas de exclusão encontram reforço na maneira como a tecnologia vem sendo incorporada ao cotidiano escolar. Não se trata aqui da digitalização da educação, mas da captura do discurso tecnológico por uma pedagogia do controle. O mesmo sistema que demoniza o uso autônomo de celulares pelos estudantes — associando-os à indisciplina — é o que agora se utiliza de plataformas, dashboards e algoritmos para definir, de forma opaca, quem merece permanecer ou ser removido da rede. A lógica do “download” se impõe: o professor e o estudante devem baixar, repetir, cumprir metas. A lógica do “upload” — do compartilhamento criativo e da autoria — é punida ou ignorada.

O caso de Carapicuíba é emblemático: uma diretora com apoio massivo da comunidade escolar, com histórico de liderança, foi desligada por não alcançar metas associadas à reorganização de escolas vizinhas. Já os professores da capital, mesmo avaliados positivamente por alunos e colegas, foram demitidos com base em critérios opacos. Em ambos os casos, o conflito gerou mobilização popular — e, no caso paulistano, repressão violenta por parte da Polícia Militar, o que inscreve o episódio no campo da necropolítica (Mbembe, 2018), onde o Estado decide quem pode existir pedagogicamente — e quem deve ser silenciado.

Silva e Gomes apontam que avaliar implica uma escolha de valores: o que é qualidade? O que se considera sucesso? Quem define os critérios de mérito e exclusão? Quando a política educacional responde a essas perguntas com metas abstratas, ignorando as vozes da comunidade escolar e as realidades locais, ela deixa de avaliar para formar — e passa a avaliar para excluir.

Portanto, os eventos recentes em São Paulo e em outros Estados governados pelos atores do neoliberalismo à brasileira não são desvios isolados, mas sintomas de um modelo de avaliação que perdeu sua função pedagógica e passou a servir como mecanismo de disciplinamento institucional, reproduzindo desigualdades, gerando medo e dissolvendo laços comunitários.

A lógica de responsabilização tecnocrática, ancorada em metas impessoais e métricas descontextualizadas, transformou a escola pública em um campo de exceção silencioso. A pedagogia do medo, que antes se impunha sobre os estudantes, agora recai também sobre os corpos docentes e gestores. Não há espaço para dissenso, autoria ou escuta – apenas para performance. Tiraram os celulares da sala de aula; agora, na caixa preta dos sistemas avaliativos, os próprios operadores dessa lógica são os próximos a serem julgados e descartados. Contra essa engrenagem excludente, urge reconstruir a avaliação como um pacto ético e coletivo, capaz de reconhecer singularidades, reparar desigualdades e devolver à escola sua potência formadora e emancipadora.

Referências:

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