Por Antonio Archangelo
“O inferno são os outros.”
— Sartre
A crise não é do Estado. A crise é do Capitalismo. Essa constatação simples, porém subversiva, é sistematicamente invisibilizada pelo discurso dominante. Ao atribuir à máquina estatal o lugar de vilã — ineficiente, inchada, corrupta — esconde-se que ela é apenas a engrenagem visível de um projeto muito maior, um projeto de classe. A inversão do diagnóstico é o alicerce da política econômica brasileira das últimas décadas: o problema nunca é o mercado, é sempre o Estado.
A partir desse deslocamento retórico, todas as medidas se tornam possíveis: cortes orçamentários, privatizações, desresponsabilização pública, parcerias público-privadas, militarizações escolares, rankings meritocráticos e reformas que parecem neutras, mas que operam como dispositivos de expropriação social. Reformar o Estado — diz o neoliberalismo — é torná-lo “eficiente”. Mas eficiente para quem? Para quê?
A romantização neoliberal parte da crença de que a racionalidade do mercado pode produzir justiça. É uma fé tecnocrática, sustentada por uma linguagem de metas, indicadores, planilhas e índices que mascaram a desigualdade estrutural em nome da “qualidade”. Por trás disso, há um embate histórico entre reformistas, que aceitam o jogo desde que o Estado funcione “melhor”, e os revolucionários, que reconhecem que o próprio jogo é manipulado — que o tabuleiro precisa ser virado.
Nesse contexto, a escola pública é convocada a desempenhar um papel ambíguo: ela deve formar cidadãos, mas também operários flexíveis; deve ser espaço de emancipação, mas também de controle. O discurso da “qualidade” serve como muleta para a lógica de avaliação que se impõe não para diagnosticar e melhorar, mas para punir e hierarquizar.
O Estado, outrora garantidor de direitos, torna-se o grande auditor.
Como alerta Peroni (2008), vivemos uma inversão perversa: as avaliações institucionais, que deveriam produzir diagnósticos para políticas públicas robustas, tornaram-se mecanismos meritocráticos que culpabilizam professores e escolas pelos resultados de um sistema cuja desigualdade é estrutural. Quando se avalia sem considerar o território, a classe social, a raça e a infraestrutura, não se mede aprendizado — se mede privilégio.
E o que é avaliado? O que é ensinado. O conteúdo da avaliação impõe o currículo mínimo e higienizado exigido pelo mercado. Aquilo que não cabe na matriz de competências — como arte crítica, pensamento divergente, consciência histórica ou autonomia política — é apagado, marginalizado, deslegitimado.
Essa política de avaliação revela a redefinição do papel do Estado. Ele deixa de ser executor de políticas estruturantes e assume o posto de curador de performances. A escola vira palco. Os professores, personagens vigiados. E os alunos, estatísticas.
Mas essa constatação nos impõe uma urgência: qual o papel da escola hoje? Para quem ela serve? Para quê serve medir, se não se mede o que importa? Se não se mede a fome, a violência, a desigualdade digital, a ausência de livros e de tempo?
Quando se diz que a escola é má porque não atinge metas, esquece-se que é o próprio sistema quem as define. Como num jogo de espelhos, o Estado projeta no professor a sua própria omissão.
O inferno, então, não são os outros. O inferno é este projeto de sociedade que empilha corpos nos rankings e chama isso de política pública.
Referência
PERONI, Vera Maria Vidal. Políticas públicas e gestão da educação em tempos de redefinição do papel do Estado. In: VII Seminário de Pesquisa em Educação da Região Sul. Itajaí, SC, 2008. Disponível em: https://link.ufms.br/XHtlp. Acesso em: 02 jun. 2025.
