🧾 A falência do Estado gestor e o desmonte por dentro do SUS e da educação pública

Por Antonio Archangelo
Editor do Portal Archa

Se há um fenômeno que define a gestão pública brasileira contemporânea, ele é o abandono sistemático do Estado como executor de políticas sociais universais. Em seu lugar, consolida-se uma figura burocrática que assume ares de modernidade, mas cuja essência é profundamente regressiva: o Estado auditor. Um ente que não executa, não planeja com autonomia e nem atua diretamente sobre a vida dos cidadãos. Em vez disso, terceiriza responsabilidades e avalia performances, como se gerir pessoas e direitos pudesse ser reduzido a índices e planilhas.

Essa mudança estrutural, como bem analisado por Vera Maria Vidal Peroni (2008), está alicerçada em um diagnóstico profundamente ideológico: não é o capitalismo que está em crise, mas o Estado. A saída, portanto, não seria a redistribuição de riqueza, o fortalecimento de políticas públicas, ou a democratização da gestão — mas sim a reforma do próprio Estado para se adequar à lógica de mercado.

Sob esse prisma, as reformas empreendidas a partir do governo Fernando Henrique Cardoso, via Ministério da Administração e Reforma do Estado (MARE), introduziram as noções de privatização, terceirização e publicização, criando a arquitetura do Estado mínimo para as políticas sociais e máximo para o capital financeiro. Peroni evidencia que, com a Terceira Via, a privatização clássica do neoliberalismo foi substituída pela crença no Terceiro Setor como forma de executar ações antes de responsabilidade estatal. O discurso da eficiência passa a ser usado para justificar a presença do privado na gestão de hospitais, escolas, centros culturais, transporte, alimentação, assistência social — enquanto o Estado se restringe a repassar verbas e emitir relatórios.

No Sistema Único de Saúde (SUS), essa lógica se materializa na entrega de unidades inteiras para Organizações Sociais (OSs). A justificativa é sempre a mesma: agilidade, eficiência, modernização. Mas a realidade mostra outra coisa: contratos mal fiscalizados, vínculos precários, interesses políticos locais travestidos de filantropia e descontinuidade nos atendimentos. Os conselhos municipais, quando atuam com independência, percebem que a lógica das OSs esvazia o SUS como projeto constitucional — porque substitui a universalidade e a integralidade do cuidado por metas contratuais e indicadores de desempenho, frequentemente descolados da realidade concreta dos usuários.

Não é diferente na educação. Desde os anos 2000, assistimos à substituição da função pedagógica e social do Estado por mecanismos de avaliação padronizada, controle de desempenho docente e ranqueamento de escolas. A responsabilização pelo fracasso escolar recai sobre professores e alunos, como se as desigualdades históricas e estruturais não fossem responsabilidade do sistema educacional como um todo. Avaliar, aqui, não é diagnosticar para intervir — é punir, premiar e reduzir a complexidade do aprendizado a uma prova de múltipla escolha. Como lembra Peroni, a avaliação meritocrática deixa de ser ferramenta de diagnóstico para se tornar instrumento de dominação e culpabilização.

Essa lógica de gerenciamento e quase-mercado — onde os serviços sociais são transformados em produtos, os alunos em clientes e os professores em operadores — é o que Foucault já havia diagnosticado como uma das tecnologias de governo da sociedade neoliberal. O Estado se retira da cena da execução para melhor controlar e vigiar os que o substituem, mantendo o poder de regular, avaliar e premiar ou punir conforme metas. Trata-se, como diria Flach (2009), de uma escola (e poder público) que exclui ao mesmo tempo em que finge incluir, colocando o sucesso e o fracasso como responsabilidade individual de sujeitos que já partem de posições desiguais.

Essa transformação do papel do Estado também está ancorada em nossa história patrimonialista e colonizada, como destaca Peroni ao citar Florestan Fernandes: um “Estado-amálgama” que mistura interesses privados com estrutura pública, onde pactos pelo alto mantêm as elites no poder. A chamada descentralização, na prática, é a descentralização da culpa e da precarização, sem autonomia real, sem recursos suficientes e sem ruptura com o passado autoritário.

O que estamos vivendo, portanto, não é apenas uma crise de gestão. É uma crise de projeto de nação. A terceirização da saúde, a focalização das políticas públicas e a submissão das escolas aos indicadores do capital não são acidentes — são elementos centrais de uma política que desmonta o Estado por dentro, mas mantém sua aparência funcional.

Contra esse projeto, é urgente retomar o sentido originário do SUS e da educação pública como direitos universais e não como mercadorias condicionadas à eficiência. É preciso, como fazem alguns conselhos de saúde e educação, denunciar a farsa do gestor tecnocrata que apenas avalia e repassa recursos, enquanto a população sofre nas filas, nas salas superlotadas, nos exames atrasados e nos corredores vazios de políticas reais.

O Estado auditor não pode substituir o Estado cuidador. A gestão democrática, prevista na Constituição, precisa deixar de ser palavra vazia em documentos institucionais para se tornar prática cotidiana de diálogo, transparência e compromisso com a justiça social. Não há república possível se o povo é gerenciado como número e descartado como despesa.

O SUS e a escola pública não são máquinas improdutivas — são a base de uma democracia real. Mas essa democracia só existirá quando o Estado deixar de ser o gestor das ausências e voltar a ser presença estruturante na vida dos que mais precisam.

O Estado que deveria proteger os frágeis virou fiador dos fortes. Em nome da eficiência e do equilíbrio fiscal, abdica de planejar, executar e transformar — e se contenta em auditar. Mas não há democracia sob vigilância fiscal, nem justiça social sob contrato gerencial. A luta hoje é contra o apagamento do Estado executor — e pela reconstrução de um Estado comprometido com o bem comum e não com os mercados.


📚 Referências

BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Brasília: Senado Federal, 1988.

FERNANDES, Florestan. A revolução burguesa no Brasil. Rio de Janeiro: Zahar, 1976.

FLACH, Simone. Racismo, escola e exclusão. Campinas: Papirus, 2009.

FOUCAULT, Michel. A hermenêutica do sujeito: curso no Collège de France (1981–1982). São Paulo: Martins Fontes, 2010.

PERONI, Vera Maria Vidal. Políticas públicas e gestão da educação em tempos de redefinição do papel do Estado. In: SEMINÁRIO DE PESQUISA EM EDUCAÇÃO DA REGIÃO SUL – ANPED SUL, 7., 2008, Itajaí. Anais eletrônicos… Itajaí: ANPED Sul, 2008. Disponível em: https://link.ufms.br/XHtlp. Acesso em: 02 jun. 2025.

PEREIRA, Luiz Carlos Bresser. Crise econômica e reforma do Estado no Brasil. São Paulo: editora 34, 1996.
_________. A reforma do Estado dos anos 90 crise e reforma. Via http://www.mare.gov.br/reforma, 3 jun., 1997.

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