✍️ Por Antonio Archangelo
Quando se fala em “pesquisa” ou “produção de conhecimento”, muitas vezes se parte do pressuposto de que os fatos estão aí, disponíveis à observação, bastando ao pesquisador registrá-los com exatidão. Michel Foucault desmonta essa ilusão. Em A Arqueologia do Saber (1969), o filósofo francês convida o leitor a interrogar o próprio ato de conhecer, lançando as bases do que seria uma virada radical nas ciências humanas: a análise dos discursos não como reflexo da realidade, mas como práticas que constroem a própria realidade que dizem descrever.
🧠 O que é “saber”? Quem o produz? Como ele se organiza?
Foucault propõe que o saber não está contido nos livros ou nas intenções dos autores, mas nas condições históricas que tornam certos discursos possíveis, legítimos e repetíveis. Essa nova forma de análise — a arqueologia — não procura o sentido oculto de um texto, mas as regras que definem o que pode ser dito em determinada época.
“O autor, o sujeito da enunciação, o espírito da época, tudo isso pode ser suspenso. O foco deve estar no discurso em si: suas regularidades, seus silêncios, suas exclusões.”
🪛 Contra a ilusão da continuidade
A Arqueologia do Saber rompe com a ideia de que há uma linearidade ou progresso natural na história das ideias. Não existe um “fio condutor” da verdade. O que há são rupturas, descontinuidades, emergências e desaparecimentos. A história, nesse sentido, é um campo de batalhas discursivas — e não uma narrativa coerente da razão.
🗂️ O discurso como prática, e não como espelho
Foucault nos convida a tratar os discursos como práticas que fazem algo no mundo. Um relatório escolar, uma lei, uma grade curricular, uma norma científica: todos são enunciados que operam, classificam, controlam, silenciam, legitimam. A arqueologia busca mapear essas práticas discursivas sem recorrer a explicações subjetivas ou transcendentes.
O conhecimento não é descoberto. Ele é produzido — historicamente, institucionalmente, discursivamente.
🧩 O impacto na educação, na ciência e na política
Para quem vive no Brasil das reformas educacionais neoliberais, da militarização do ensino e da censura velada aos professores, A Arqueologia do Saber oferece ferramentas cruciais para desnaturalizar os discursos hegemônicos. Em vez de buscar a “melhor metodologia” ou “o conteúdo certo”, Foucault nos força a perguntar: quem define o que é conteúdo válido? Em nome de quê? Para quem serve esse saber? Quem fica de fora?
Essa abordagem é especialmente potente para pesquisas críticas em educação, onde os saberes populares, os corpos dissidentes, as vozes racializadas e os sujeitos da EJA, por exemplo, muitas vezes são excluídos dos currículos e das pesquisas ditas “científicas”.
🔗 Arqueologia do saber, As Palavras e as Coisas e A Ordem do Discurso
Com As Palavras e as Coisas, Foucault mostrou que até mesmo a figura do “homem” é uma invenção histórica — e que os saberes modernos não nascem do progresso, mas da reconfiguração dos discursos. Já em A Ordem do Discurso, ele revelou que todo discurso está submetido a um campo de forças que define quem pode falar, com que autoridade e com quais efeitos.
A Arqueologia do Saber fecha esse arco teórico com uma proposta metodológica radical: estudar os discursos sem recorrer ao autor, à intenção ou à verdade oculta — mas sim às regras que organizam sua emergência. Juntas, essas obras nos fornecem uma poderosa caixa de ferramentas para resistir aos discursos dominantes e criar outras possibilidades de dizer, pensar e educar.
Na escola, no jornal, na academia ou na política, o discurso nunca é apenas o que se fala — é também o que se cala, o que se exclui, o que se naturaliza. E é aí que começa a crítica.
*Observação: este texto nasceu de diversas anotações e reflexões provenientes das disciplinas ministradas por minha orientadora, Maria Regina Momesso, líder do GESTELD/CNPq.
📚 Para ir além:
- FOUCAULT, Michel. A Arqueologia do Saber. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2008.
- FOUCAULT, Michel. As Palavras e as Coisas. São Paulo: Martins Fontes, 2002.
- FOUCAULT, Michel. A Ordem do Discurso. São Paulo: Loyola, 1996.
- SILVA, E. J. L. da. A Análise Arqueológica do Discurso. Campinas: Autores Associados, 2014.
- CHAUÍ, Marilena. Introdução à leitura de Foucault. São Paulo: Brasiliense.
