Uma pesquisa inédita lança luz sobre um aspecto pouco debatido da máquina pública: como o próprio Estado brasileiro seleciona seus quadros internos e define quem sobe na hierarquia. O estudo, publicado na revista Contribuciones a Las Ciencias Sociales (v.17, n.9, 2024), analisou de forma sistemática todos os editais de processos seletivos internos do governo federal divulgados em 2022.
Os resultados, que acabam de vir a público, expõem uma contradição central: enquanto a retórica oficial fala em modernização e inovação, os critérios de seleção continuam marcados pela opacidade e pela baixa valorização de perfis realmente inovadores.
“Essa é a primeira análise abrangente da movimentação interna via SouGov, que envolve mais de 1.200 vagas e oferece um retrato raro de como a administração federal se organiza por dentro”, destaca o autor, Luís Guilherme Izycki.
🟢 O que o estudo descobriu
Entre os principais achados, que transformam a percepção sobre o tema, estão:
✔ Quase 1 em cada 4 vagas não tinha sequer descrição de perfil ou competência desejada, ou seja, pessoas foram selecionadas sem critérios objetivos.
✔ Apenas 29% das vagas citavam competências associadas ao empreendedorismo, como inovação e proatividade.
✔ Nos cargos de chefia e assessoramento — justamente aqueles com mais poder de decisão — só 19% mencionavam perfil empreendedor.
✔ Nenhum processo seletivo foi aberto para cargos estratégicos de alto nível.
Para Izycki, a ausência de clareza e de parâmetros revela um problema estrutural: o risco de a seleção se basear em indicações informais e afinidades políticas, e não em mérito ou capacidade de inovação.
🟢 Por que esse achado importa
Em um momento em que o governo federal propaga a necessidade de transformar o Estado em uma “organização inovadora” — discurso presente em programas como o LideraGov, a Estratégia Nacional de Governo Digital e a pauta da modernização administrativa — os dados evidenciam um fosso entre teoria e prática.
Se, por um lado, existe pressão por “modernizar” e “inovar”, na prática faltam processos transparentes que democratizem o acesso aos cargos de liderança e valorizem critérios objetivos.
O estudo também toca em um tema sensível: a ausência de critérios claros alimenta o clientelismo, a troca de favores e o predomínio de laços informais sobre parâmetros de competência.
“Mudanças dependem de pessoas. Se não valorizamos as competências certas, como quebraremos ciclos?”, provocou Izycki em uma postagem que repercutiu nas redes.
🟢 Para além do jargão do empreendedorismo
Embora o autor defenda que o Estado valorize competências empreendedoras, o achado também serve de ponto de partida para um debate mais profundo:
É possível modernizar a gestão pública importando critérios do setor privado? Ou será que “empreendedorismo” virou um rótulo vago que mascara a ausência de políticas claras de valorização do servidor e de democratização do acesso aos cargos?
Para pesquisadores críticos, os dados confirmam que a retórica empresarial no setor público nem sempre se traduz em práticas concretas que melhorem o serviço à população — e pode, inclusive, servir como biombo para a manutenção de velhos privilégios.
O estudo sugere que qualquer esforço de transformação da gestão pública brasileira terá que enfrentar não só a burocracia, mas também as contradições internas da própria máquina do Estado.
📎 Artigo completo:
“O perfil empreendedor na gestão pública: uma análise sobre os processos seletivos internos no governo federal”
