A promessa de organizar o Sistema Único de Saúde (SUS) a partir do território — aproximando serviços das populações e garantindo equidade — transformou a “territorialização” em um dos conceitos mais falados em saúde pública brasileira. Mas até que ponto essa ideia tão bonita no papel está funcionando de verdade?
Um estudo realizado por Rivaldo Mauro de Faria e Arlêude Bortolozzi, da Unicamp, e publicado na revista Geografia (v. 37, n. 3, 2012), lança luz sobre os limites e contradições da territorialização na atenção básica.
Ao invés de reconhecer territórios reais — múltiplos, dinâmicos, cheios de desigualdades e relações sociais — muitas experiências municipais reduzem o conceito a um recorte puramente burocrático e administrativo: a chamada “arearização”.
🔎 Um conceito necessário — mas mal aplicado
No papel, territorializar é planejar saúde a partir dos territórios reais. Isso significa:
✔ Conhecer condições de vida, saúde e trabalho;
✔ Mapear vulnerabilidades;
✔ Integrar promoção, prevenção e cuidado.
A ideia nasceu para corrigir o velho modelo fragmentado e centralizado, que deixava populações inteiras sem acesso — e é constitucional: o SUS deve ser regionalizado, hierarquizado e descentralizado.
Porém, o estudo mostra que na prática territorialização virou muitas vezes sinônimo de “definir áreas no mapa” para justificar equipes e repasses.
“Fala-se em territorialização, mas a prática se define muito mais pela adscrição da clientela e a definição areal de atuação do serviço do que mesmo pela apropriação do espaço”, alertam os autores.
⚠️ Riscos: padronização, controle político e iniquidades
Ao analisar criticamente a política de territorialização, o estudo denuncia:
✔ Padronização artificial: limites fixos (ex.: 4.000 pessoas por equipe de saúde da família) ignoram realidades urbanas e rurais muito distintas.
✔ Controle político: delimitar territórios administrativos muitas vezes facilita o uso eleitoral e clientelista dos serviços.
✔ Reducionismo técnico: gestores e profissionais muitas vezes não têm formação para pensar o território em sua complexidade social, histórica e cultural.
“Em vez de reconhecer os múltiplos territórios existentes e ajustar os serviços às suas demandas, muitas gestões preferem ‘criar’ novos territórios — o que é mais fácil, mas menos eficaz”, resume o artigo.
🟢 Reflexão crítica para o SUS
Para os autores, o conceito de territorialização precisa ser resgatado em toda sua força política e social:
✔ Não se trata apenas de desenhar áreas no mapa;
✔ Nem de justificar transferências de verbas;
✔ Mas de compreender as realidades locais e atuar de forma integrada.
Eles alertam que a territorialização pode acabar reproduzindo as mesmas desigualdades sociais e econômicas que o SUS nasceu para combater, se for reduzida a técnica de planejamento sem reflexão crítica.
🗨️ Debate necessário
Em tempos de discussão sobre financiamento do SUS, saúde da família, pactuação federativa e combate às desigualdades regionais, esse estudo oferece um alerta oportuno:
Para garantir o direito à saúde de forma universal, equitativa e integral, é preciso muito mais do que mapas e planilhas: é preciso conhecer os territórios e ouvir quem vive neles.
📎 Fonte:
FÁRIA, Rivaldo Mauro de; BORTOLOZZI, Arlêude. A territorialização como proposta para organização da atenção básica à saúde no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS): análise de uma prática geográfica da saúde. Geografia, Rio Claro, v. 37, n. 3, p. 431-444, 2012.
