O 9 de Julho e a disputa pelo sentido da palavra ‘Revolução’


Por Antonio Archangelo – Portal Archa


Em São Paulo, hoje é feriado. 9 de Julho. “Dia da Revolução Constitucionalista de 1932.” Mas, afinal, o que significa “revolução”? Quem decide o que é revolucionário — e para quê?

Em meio a solenidades, desfiles cívicos e discursos inflamados sobre “heróis” que defenderam a Constituição contra Getúlio Vargas, convém lembrar: 1932 não foi uma revolução no vácuo. Ela aconteceu num Brasil em ebulição, em que a própria palavra revolução estava sendo disputada por todas as correntes políticas — do liberalismo republicano ao fascismo nascente, passando pela reação católica.

Como lembra André Jobim Martins em artigo profundo publicado na Varia Historia (2025), “os conceitos de ‘liberdade’, ‘ordem’ e ‘revolução’ são centrais ao léxico político brasileiro do período” (MARTINS, 2025). Mas não de forma pacífica: cada corrente tentava capturá-los, redefini-los e colocá-los a serviço de seu projeto de poder.

1932: uma revolta, uma guerra civil ou uma revolução?

É lugar-comum nas escolas paulistas repetir que 1932 foi uma “revolução” — como se o nome, por si só, justificasse a nobreza da causa.

Os paulistas se levantaram contra Getúlio Vargas exigindo uma Constituição. De fato, havia um déficit democrático gritante no governo provisório instaurado em 1930. Mas havia também outros fatores: elites estaduais ressentidas pela perda de poder, temor de reformas trabalhistas, ambição de manter um modelo político oligárquico — ainda que com nova roupagem.

Para muitos historiadores, chamar 1932 de “revolução” é, no mínimo, discutível. Era um movimento de reação de uma elite deslocada — ou uma guerra civil estadual tentando impor sua agenda ao resto do país.

Essa ambiguidade não é acidente: está no próprio DNA da palavra revolução.

A força ambígua da palavra “revolução”

André Jobim Martins lembra, com apoio em Reinhart Koselleck, que revolução é um “clichê” de poder tremendo: “uma dessas expressões empregadas de maneira enfática, cujo campo semântico é tão amplo e cuja imprecisão conceitual é tão grande que poderia ser definida como um clichê” (MARTINS, 2025, p. 5).

Koselleck via na palavra uma força quase mágica: ela legitima rupturas, violências, transformações drásticas. Em seus usos modernos, carrega uma promessa de “perfectibilidade” histórica — a ideia de que a sociedade pode ser moldada racionalmente para um futuro melhor.

Em 1932, os paulistas se apropriaram dessa força simbólica. Ao chamar sua rebelião de “revolução constitucionalista”, davam-lhe legitimidade, heroísmo e um verniz moral. Mas eles não estavam sozinhos nessa disputa semântica.

Um Brasil em disputa: reacionários, fascistas e liberais redefinindo “revolução”

O artigo de Martins faz um mergulho fascinante nas disputas intelectuais do período 1928–1936.

Na época, havia uma verdadeira obsessão pelo conceito de revolução. O Brasil passava por transformações sociais e políticas profundas, com o colapso da República Velha, o governo provisório de Vargas e um cenário internacional marcado pela ascensão do fascismo, do comunismo e das novas direitas reacionárias.

Como escreve Martins, havia “um novo horizonte de voluntarismo político, permitindo uma reforma do Estado que o adequasse tanto às particularidades locais quanto às mudanças temporais” (MARTINS, 2025, p. 8).

Em outras palavras: todo mundo queria mudar o Brasil. A diferença estava no como e no para quê.

A “revolução como reação”: o caso católico e fascista

Um dos pontos mais instigantes do estudo é a análise de como setores católicos ultramontanos e simpatizantes do fascismo redefiniram revolução para usá-la contra o liberalismo.

Alceu Amoroso Lima (o Tristão de Athayde), líder do laicato católico, construiu uma militância cultural que via na liberdade moderna não um valor a ser defendido, mas o pecado original da desordem social. Em seu discurso, liberdade era associada ao egoísmo individualista, à decadência moral, à fragmentação da sociedade — frutos venenosos do protestantismo e do iluminismo liberal.

A solução? Uma nova ordem espiritual. Mas para chegar lá, não se hesitava em adotar o vocabulário revolucionário.

Martins demonstra como até mesmo Jackson de Figueiredo, mentor de Alceu, pregava o uso de “métodos revolucionários” para defender a ortodoxia católica contra o que via como dissolução modernista. Era a revolução contra a revolução — uma inversão notável do sentido original.

Otávio de Faria, outro intelectual do período, foi ainda mais explícito. Em Maquiavel e o Brasil (1933), ele defendia abertamente a apropriação da linguagem revolucionária para fins autoritários, elogiando Mussolini por ter convertido o imaginário socialista em apoio fascista.

Como escreve Martins:

“A virtude de Mussolini está na sua capacidade de transformismo, de ‘falar várias línguas conforme o interlocutor’. O êxito do fascismo está em ter sabido converter o vocabulário e o imaginário revolucionários em favor de objetivos regeneradores, não antissociais” (MARTINS, 2025, p. 27).

Em outras palavras: para vencer, era preciso fazer revolução — ainda que para restaurar a ordem.

Sérgio Buarque de Holanda e o embate intelectual

O artigo também revela como Sérgio Buarque de Holanda se posicionava nesse contexto.

Em Raízes do Brasil (1936), ele criticava o fascismo de forma elegante, mas firme. Sua famosa expressão “nossa revolução” não era um chamado ao autoritarismo — mas uma reflexão crítica sobre o que poderia ser uma modernização real.

Sérgio reconhecia a falência do liberalismo oligárquico da Primeira República, mas rejeitava soluções autoritárias que disfarçavam o reacionarismo sob o manto de uma falsa revolução.

Em suas resenhas, ele polemizava com autores como Otávio de Faria, deixando claro que havia ali um embate ideológico de fundo: a disputa não era só por poder, mas pelo sentido mesmo de palavras como ordem, liberdade e revolução.

A lição para hoje: o mito cívico e as memórias disputadas

E nós, quase um século depois?

Hoje, políticos e instituições oficiais comemoram 9 de Julho como um marco cívico inquestionável. Fala-se em “luta por uma Constituição”, em “defesa da legalidade”, em “revolução”.

Mas essa celebração esquece — ou apaga — que a palavra revolução sempre foi campo de batalha. Em 1932, não havia um projeto único ou consensual. Havia múltiplos projetos de país, inclusive conservadores, que não hesitavam em mobilizar a aura revolucionária para fins de manutenção da ordem social, exclusão política e controle cultural.

Ao canonizar 1932 como uma revolução pura e heroica, corremos o risco de perder de vista essas contradições — e de repetir o mesmo erro.

Como alerta Martins:

“No debate político, proposições persuasivas são capazes tanto de definir uma agenda de temas e problemas como, de modo mais sutil, criar ou transformar valores” (MARTINS, 2025, p. 6).

Em outras palavras: quem controla as palavras controla o imaginário.

Não se trata de negar a importância de 1932. Nem de ignorar o autoritarismo varguista que o movimento enfrentava.

Mas de recusar o mito cívico simplista que transforma a história em celebração vazia.

Reconhecer que revolução não é um bem absoluto — mas um conceito disputado. Que liberdade e ordem são valores em tensão. Que a história não foi (e não é) neutra.

No dia 9 de Julho, São Paulo poderia se orgulhar não só de comemorar sua memória — mas de interrogá-la.


📌 Referência principal

MARTINS, André Jobim. Liberdade, ordem, revolução: metamorfoses no léxico político brasileiro (1928–1936). Varia Historia, Belo Horizonte, v. 41, e25021, 2025. https://doi.org/10.1590/0104-87752025v41e25021


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