Em meio a um cenário de retrocessos educacionais, políticas de austeridade, vigilância pedagógica e tentativas de silenciar debates sobre gênero, raça e direitos humanos nas escolas, pensar educação pública emancipatória é mais que um exercício acadêmico: é um ato político.
Foi com esse horizonte que Antonio Flavio Archangelo Junior (doutorando em Educação Escolar na UNESP) e a Profª Dra. Maria Regina Momesso (UNESP), integrante e líder do Gesteld (Grupo de Estudos em Educação, Sexualidade, Tecnologias, Linguagens e Discurso), desenvolveram e publicaram o artigo “Por uma educação escolar pública emancipatória: o cuidado de si, multiletramentos e o Método Camões”, no Observatorio de la Economía Latinoamericana (v.23, n.7, 2025).
O texto parte de uma crítica radical à função histórica da escola como aparelho de Estado disciplinador, que produz subjetividades dóceis e acríticas. Inspirado na filosofia de Michel Foucault, o estudo questiona: como transformar esse dispositivo de poder em espaço de autonomia e reflexão?
O ponto de partida conceitual do artigo é o cuidado de si, conceito foucaultiano que resgata práticas filosóficas antigas — como a escrita reflexiva, a correspondência crítica e o exame de consciência — para pensar formas de subjetivação não subordinadas ao biopoder.
Os autores destacam que, na escola, o cuidado de si não é algo dado: a instituição tanto pode disciplinar, vigiar e impor normalizações quanto pode fomentar pensamento crítico, ética, autorreflexão e autonomia. A diferença está no projeto pedagógico e nas relações de poder que se estabelecem no cotidiano escolar.
O texto lembra Foucault (1988) ao sublinhar que técnicas de si na escola envolvem escrita, diálogo, debate, autoconhecimento e responsabilidade, ferramentas que podem libertar sujeitos dos discursos dominantes e das hierarquias impostas.
📌 MULTILETRAMENTOS COMO RESPOSTA À COMPLEXIDADE
Outro eixo do trabalho é a pedagogia dos multiletramentos, conceito proposto por Cope e Kalantzis para dar conta das múltiplas linguagens e mídias que atravessam a vida contemporânea.
Em vez de restringir alfabetização à decodificação de textos escritos, os multiletramentos valorizam a capacidade de ler e produzir sentidos em linguagens verbais, visuais, sonoras e digitais. Para escolas periféricas, isso significa dar voz a quem historicamente foi silenciado, incluindo suas linguagens, culturas e realidades.
No artigo, os autores defendem que os multiletramentos são mais que uma técnica didática: são um ato político de reconhecimento da diversidade cultural e um caminho para democratizar saberes.
📌 O MÉTODO CAMÕES NA PRÁTICA
O estudo narra a implementação do Método Camões em escolas públicas de Rio Claro/SP, nascidas da urgência pedagógica do ensino remoto durante a pandemia de COVID-19. Inspirado em Freinet, Foucault e nos multiletramentos, o método rompeu com a lógica transmissiva e bancária, criando estações de trabalho autônomas como:
- Jornal do Camões (produção jornalística/literária)
- Sociedade dos Poetas Uivantes (literatura e reflexão)
- Companhia de Teatro I-Juca Pirama (dramatização)
- Agência de Publicidade Lima Barreto (criação publicitária)
- Uivantes Records (podcasts, vídeos, mídias digitais)
Os alunos organizavam-se em equipes com funções rotativas: editor-chefe, produtor de conteúdo, comentarista, compartilhador e observador. Cada função estimulava habilidades comunicativas, pensamento crítico, cooperação e autoria. Além disso, o método integrava tecnologias como WordPress, Anchor e YouTube para publicar conteúdos reais, dando visibilidade e sentido concreto à produção dos estudantes.
📌 EDUCAÇÃO COMO ATO POLÍTICO
O artigo não esconde sua posição crítica: a escola brasileira, marcada por desigualdades estruturais, ainda funciona em muitos casos como mecanismo de normalização social, apagando saberes periféricos e impondo hierarquias coloniais.
O Método Camões surge como contra-dispositivo: uma tentativa de criar fissuras nesse poder disciplinar, oferecendo aos estudantes ferramentas para dizerem sua palavra, denunciarem violências, pensarem sobre si mesmos e sobre o mundo.
Temas como gênero, racismo, sexualidade e desigualdade social foram incorporados de forma crítica e aberta, dando centralidade à realidade vivida pelos alunos. A escrita e a fala tornam-se aqui técnicas de si — não apenas para produzir conhecimento, mas para produzir sujeitos críticos e éticos.
Um dos resultados mais significativos foi o surgimento da Rede Camões, uma rede de produção estudantil que se manteve viva mesmo após o retorno presencial, demonstrando a potência de uma pedagogia que não se limita a aulas formais, mas constrói comunidades de sentido, memória e resistência.
O artigo destaca que muitos alunos continuaram produzindo conteúdo de forma autônoma, criando novos espaços de expressão e articulação política.
📌 UMA EDUCAÇÃO PÚBLICA PARA A EMANCIPAÇÃO
Em última análise, o trabalho defende que educação pública emancipatória não é um slogan bonito, mas um projeto concreto, que exige:
✅ Reconhecer a escola como campo de disputa de poder
✅ Valorizar as linguagens e culturas periféricas
✅ Promover autonomia, ética e pensamento crítico
✅ Usar tecnologias não como vigilância, mas como ferramenta de expressão
✅ Estimular autoria estudantil como prática de cidadania ativa
📌 Leia o artigo completo:
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👉 DOI: https://doi.org/10.55905/oelv23n7-022
