Dispensas de licitação, contratos emergenciais e “fura-filas” revelam como a crise sanitária escancarou um sistema já contaminado pelo jeitinho institucionalizado — e como a cidadania crítica é a única vacina possível.
Por Portal Archa
A pandemia de Covid-19 foi um divisor de águas para a saúde pública brasileira — mas também um espelho incômodo daquilo que somos enquanto República. Sob o pretexto da emergência, gestores públicos driblaram licitações, favoreceram aliados, superfaturaram respiradores e, claro, furaram a fila da vacina. E não, isso não foi pontual, nem acidental.
Um estudo recém-publicado na Revista Oikos pela pesquisadora Celeste Lopes da Silva e os coautores Tatiana Rosa e Carlos Artiaga, da Universidade Federal de Viçosa (UFV), oferece uma radiografia da moralidade pública em tempos de calamidade. Intitulada “Gestão Pública Moral: os casos de improbidade administrativa durante a pandemia da Covid-19”, a pesquisa analisou 30 notícias publicadas entre abril de 2020 e dezembro de 2021. O que emerge do levantamento é um diagnóstico cruel, mas necessário: não é a flexibilização das leis que gera a improbidade — é o uso distorcido do poder em benefício próprio que as torna irrelevantes.
Entre seringas e superfaturamentos
A pesquisa categorizou os episódios em dois blocos: compras ou contratações irregulares com dispensa de licitação (16 casos) e comportamentos desviantes de agentes públicos (14 casos). Entre os destaques, estão compras com sobrepreço de até 4.541% e contratos firmados com empresas sem funcionários, muitas vezes ligadas a familiares de servidores públicos. Em um dos casos, uma prefeitura pagou R$ 175 mil por respiradores idênticos aos comprados por outro município por R$ 32 mil.
É o velho truque da “licitação dispensada” que, longe de agilizar salvamentos, serviu para acelerar desvios. O relatório do estudo revela que o improviso legal abriu as portas para fraudes previsíveis — e previsivelmente impunes.
Moralidade à brasileira: o jeitinho como norma
Mas não foi só o dinheiro público que sangrou. A moralidade, conceito jurídico de difícil tradução prática, foi sistematicamente corrompida por servidores que burlaram o Plano Nacional de Vacinação, participaram de festas clandestinas ou incentivaram o uso de “tratamentos precoces” sem base científica. Secretários vacinando esposas, prefeitos em baladas, gestores silenciando sobre desvios — todos os elementos do que a pesquisa nomeia como cultura institucional aristocrática, onde quem ocupa o cargo se sente acima da coletividade.
O estudo recupera autores como Da Matta e Barroso para evidenciar que esse tipo de transgressão não é exceção, mas expressão de uma lógica brasileira onde o “jeitinho” e a “malandragem institucional” substituem o compromisso com o bem comum. Segundo os autores, “muitos dos agentes envolvidos tinham alto grau de instrução — e foi justamente isso que os habilitou a burlar o sistema com mais sofisticação”.
Improbidade não é improviso — é escolha
Um dos achados mais significativos da pesquisa é que os atos ímprobos não surgiram com a pandemia. Dados do Conselho Nacional de Justiça indicam mais de 18 mil condenações por improbidade entre 2009 e 2018 — ou seja, muito antes do coronavírus. O problema não é a excepcionalidade da crise, mas a regularidade das práticas desviantes.
Nesse sentido, o artigo acerta ao defender que não adianta criar mais burocracia se o agente quiser fraudar o processo. O caminho está na formação ética e técnica dos gestores públicos e, sobretudo, no fortalecimento do controle social.
O papel da cidadania crítica
Em suas considerações finais, os autores lançam uma advertência que casa perfeitamente com o espírito do Portal Archa: “o cidadão deve usar o poder da ação popular para mostrar seu descontentamento com a ação de um agente público”. O controle social — via conselhos, portais da transparência, audiências públicas ou denúncias diretas — precisa deixar de ser um recurso de última instância para se tornar rotina democrática.
A improbidade administrativa, quando naturalizada, torna-se uma forma de necropolítica: ela decide quem morre, quem tem acesso a insumos, quem fura a fila e quem fica no vácuo da espera. E o antídoto, ao contrário do que prometiam os kits sem eficácia, passa pela participação informada, pela denúncia organizada e pela cultura da honestidade institucional.
⚖️ Leia o estudo completo:
Gestão Pública Moral: os casos de improbidade administrativa durante a pandemia da Covid-19
Link para a revista Oikos
