Letramentos para descolonizar: quando brincar é resistir

Experiência de educação linguística crítica em escola pública propõe práticas contracoloniais de linguagem como ferramenta de emancipação.

Por Antonio Archangelo
Para o Portal Archa


Na contramão do tecnicismo e da gramática normativa como fim pedagógico, uma experiência no interior da educação pública propõe um outro caminho: usar a linguagem como prática de resistência, não como obediência. Foi o que fez o Projeto Brincadas, ao incorporar à sala de aula um multiletramento crítico, sensível e insurgente — onde brincar é verbo de luta e enunciação coletiva.

O estudo das pesquisadoras Jéssica de Lima Silva e Thaís Sampaio Ribeiro narra uma experiência de formação de professores e práticas educativas em uma escola da rede pública de Santo André (SP), marcada por relações étnico-raciais plurais e por um histórico de vulnerabilidade social. No lugar da “norma padrão”, emerge a potência dos falares periféricos, das expressões afetivas e das brincadeiras como espaço de construção do comum.

A proposta não é apenas ensinar português de forma diferente — mas desobedecer à lógica colonial da linguagem escolar. Nas palavras das autoras, trata-se de “reivindicar a dimensão política do brincar como prática de escuta, memória e autoria”, forjando uma pedagogia contracolonial que respeita os corpos, os territórios e as falas silenciadas pelas estruturas curriculares tradicionais.


Linguagem não como código, mas como território

O texto dialoga com autores como Makoni, Pennycook, Mignolo e Walter Frantz para romper com o viés eurocêntrico das políticas linguísticas no Brasil. Mais do que desconstruir a norma culta, o projeto propõe criar novos referenciais, em que o letramento não é uma escada para ascensão individual, mas um gesto coletivo de afirmação identitária, territorial e afetiva.

Ao valorizar o “erro” como expressão legítima e dar centralidade à oralidade e à performance, a prática vivida em sala desarma a lógica do “fale corretamente para ser aceito”. Em seu lugar, emerge uma ética de escuta e criação: a linguagem deixa de ser filtro de mérito e passa a ser canal de resistência.

As autoras são contundentes ao afirmar que, num país marcado pela colonialidade do saber e do poder, práticas de letramento engajadas não podem ser neutras. Ou estão a serviço da reprodução, ou se colocam como ferramentas de emancipação. O Projeto Brincadas escolheu o segundo caminho — e, com ele, construiu rotas pedagógicas possíveis, mesmo em contextos de escassez.


Brincar como método e como ruptura

O brincar, nesse contexto, não é recreação — é ruptura. É gesto político que convoca os sujeitos à escuta, à partilha e à enunciação. As atividades propostas no projeto envolviam encenação de narrativas, criação de cordéis, roda de conversa e escrita coletiva — tudo orientado por uma pedagogia do encontro, em que professor e aluno são coautores de mundos possíveis.

O uso da linguagem como performance, segundo o artigo, permite desestabilizar o lugar tradicional do professor como reprodutor da norma, e posicioná-lo como mediador de experiências de autoria. O aluno, por sua vez, não é mais “corrigido”, mas escutado — e a escola deixa de ser filtro e passa a ser abrigo de vozes plurais.


Educação como enfrentamento da colonialidade

O estudo se insere num campo cada vez mais fértil da educação linguística crítica no Brasil, que articula Paulo Freire com perspectivas decoloniais e contracoloniais. Ele rompe com a retórica de “inclusão” — que frequentemente oculta práticas de domesticação — e aposta em uma educação que forme sujeitos críticos, insurgentes e implicados com suas realidades.

Ao final do artigo, as autoras reiteram que ensinar língua em territórios populares exige não apenas método, mas posicionamento. Exige reconhecer que a escola, historicamente, foi parte do projeto de apagamento linguístico e cultural dos povos racializados e subalternizados — e que romper com isso é, necessariamente, reinventar o currículo, os espaços e os tempos escolares.


📖 Leia o artigo completo:
Educação Linguística Crítica e Decolonial/Contracolonial: Multiletramento Engajado para a Resistência e Emancipação no Projeto Brincadas

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