Mais de 60% das doenças que afetam humanos vêm de animais — e o SUS é a única barreira real

Estudo reforça o papel do SUS na prevenção de zoonoses e aponta falhas graves nas políticas públicas em áreas vulneráveis.

Por Antonio Archangelo
Julho de 2025

Doenças que cruzam a fronteira entre humanos e animais estão longe de ser raridade — são, na verdade, maioria. Estima-se que mais de 60% das doenças infecciosas que atingem a população humana tenham origem zoonótica. Raiva, leptospirose, toxoplasmose e sarna sarcóptica são apenas algumas delas. O que todas têm em comum? A presença cotidiana em territórios urbanos empobrecidos, a relação direta com políticas públicas descontinuadas e a urgência de abordagens integradas, onde o cuidado deixe de ser um privilégio fragmentado e passe a ser um compromisso civilizatório.

Essa é a provocação feita por um artigo publicado na Revista Pró-UniverSUS, assinado por Julia Soares Dinelli Maia, Lara dos Santos Gomes, Priscilla Nunes dos Santos, Renata Fernandes Ferreira de Moraes, Erica Cristina Rocha Roier e Mário dos Santos Filho, todos vinculados ao Programa de Mestrado Profissional em Diagnóstico em Medicina Veterinária da UniVassouras (RJ).

Com base em uma revisão de 47 estudos científicos e diretrizes internacionais, o texto aborda as zoonoses a partir do conceito de Saúde Única (One Health) — uma perspectiva que articula saúde humana, animal e ambiental como dimensões interdependentes.

Mas a força do trabalho não está apenas na articulação teórica. Está na denúncia implícita: o Brasil tem um sistema de saúde pública que conhece as ferramentas para agir, mas encontra resistências estruturais para transformá-las em ação contínua, coordenada e territorializada.

Em outras palavras, o SUS sabe o que fazer. O que falta é continuidade, prioridade e conexão real com os territórios onde essas doenças circulam com mais força.

Apesar das campanhas sazonais, ainda há falhas crônicas na cobertura vacinal de cães e gatos, ausência de políticas públicas que tratem o cuidado com pets como tema de saúde coletiva e um hiato perigoso entre a produção de conhecimento técnico e sua tradução em linguagem acessível à população.

A leptospirose, por exemplo, avança em regiões com saneamento precário e presença de roedores — um problema urbano que escancara a interdependência entre infraestrutura pública e prevenção epidemiológica. Já a toxoplasmose continua subestimada, ainda que represente risco concreto para gestantes e imunossuprimidos. A raiva, apesar de controlada em alguns contextos, ressurge onde a vacinação não chega. A sarna sarcóptica, mais comum do que se pensa, permanece invisível no discurso sanitário, apesar de sua alta transmissibilidade e impacto em populações vulneráveis.

Além disso, o estudo chama atenção para um ponto raramente discutido fora do meio técnico: a resistência antimicrobiana gerada pelo uso indiscriminado de antibióticos em medicina veterinária. Trata-se de um efeito colateral silencioso, mas devastador — que compromete tratamentos futuros, eleva custos do sistema e alimenta uma espiral de ineficácia no controle de infecções.

O texto não oferece soluções mágicas. Mas faz um chamado claro: ou enfrentamos as zoonoses como política pública integral, ou continuaremos a repetir o ciclo entre calamidade e omissão.

A prevenção exige investimento real em educação em saúde, fortalecimento da atenção básica, articulação entre vigilância epidemiológica e serviços veterinários, estímulo a práticas de cuidado e posse responsável, e, sobretudo, um compromisso político com o território como unidade de planejamento — não como estatística.

O SUS ainda é a única estrutura com capilaridade e legitimidade para fazer essa mediação. Mas para isso, precisa deixar de ser apenas executor de campanhas pontuais e se assumir como protagonista de uma saúde coletiva interespécies, coerente com os princípios constitucionais que o fundam.

Não se trata de salvar os animais. Trata-se de salvar a todos. Porque onde falta cuidado, sobra doença — e ela não pergunta se você tem pedigree ou carteira assinada.

📚 Leia o artigo completo na Revista Pró-UniverSUS: https://doi.org/10.21727/rpu.16i2.5018

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