As principais mudanças na educação brasileira nas últimas décadas não surgiram apenas de gabinetes ou universidades. Elas nasceram da luta de movimentos negros e indígenas, que transformaram denúncia em conhecimento, protesto em lei e resistência em proposta pedagógica. É o que mostra o artigo “Amansar o giz: educação, decolonialidade e os saberes de movimentos negros e indígenas”, publicado na Revista Interdisciplinar.
O estudo analisa como esses movimentos deixaram de ser vistos apenas como grupos que reivindicam direitos e passaram a ser reconhecidos como produtores de saber, capazes de ensinar o próprio sistema educacional a mudar.
A expressão “amansar o giz”, inspirada na educadora indígena Célia Xakriabá, resume bem a ideia central do artigo: a escola brasileira foi construída com regras, conteúdos e valores que ignoraram — e muitas vezes silenciaram — a história, os corpos e os saberes de povos negros e indígenas. Amansar o giz significa transformar esse modelo para que ele pare de ferir e passe a acolher.
O texto mostra que foi a pressão organizada desses movimentos que levou à criação de leis como a 10.639/2003 e a 11.645/2008, que tornaram obrigatório o ensino da história e da cultura afro-brasileira, africana e indígena nas escolas. Essas leis não surgiram por acaso: foram resultado de décadas de luta contra o racismo e o apagamento histórico.
O artigo lembra, por exemplo, a Marcha Zumbi dos Palmares, em 1995, quando o movimento negro levou ao Estado brasileiro a exigência de políticas educacionais antirracistas. Também destaca o protagonismo indígena desde os anos 1970, com organizações que lutaram contra a ideia de que povos originários precisavam ser “integrados” ou apagados para caber na escola.
Segundo os autores, esses movimentos ajudaram a desmontar o mito da “democracia racial” — a ideia falsa de que o Brasil vive em harmonia racial — e mostraram que o racismo estrutura a sociedade e, consequentemente, o sistema educacional. Ao fazer isso, abriram espaço para uma educação baseada na diferença, e não na imposição de um único modelo cultural.
O estudo identifica três grandes impactos dessa atuação. O primeiro é identitário: a valorização das ancestralidades negras e indígenas, da memória, da história e do pertencimento. O segundo é político: a conquista de políticas públicas como cotas raciais, consulta prévia a povos indígenas e diretrizes curriculares específicas. O terceiro é estético e corporal: a quebra de padrões eurocêntricos que definem quais corpos, saberes e linguagens são considerados legítimos na escola.
Outro ponto central do artigo é mostrar que educação antirracista não se faz apenas com datas comemorativas ou conteúdos isolados. Ela exige mudar currículos, práticas pedagógicas e a própria forma de enxergar quem ensina e quem aprende. Nesse sentido, os movimentos sociais aparecem como verdadeiros agentes educadores, que ensinam à escola aquilo que ela historicamente se recusou a aprender.
Ao final, os autores concluem que a educação brasileira só será realmente antirracista, democrática e plural quando reconhecer movimentos negros e indígenas como sujeitos que produzem conhecimento. Amansar o giz, nesse sentido, não é enfraquecer a escola — é torná-la mais justa, viva e conectada com o Brasil real.
Referência
MANTOVANI, José Pascoal; PORTO, Fernando Bretas Vieira; GUERRA, Ana Luíza Siqueira; VASQUES, Pedro Morais. Amansar o giz: educação, decolonialidade e os saberes de movimentos negros e indígenas. Revista Interdisciplinar, v. 10, n. 6, e1539, 2025. DOI: 10.52641/cadcajv10i6.1539.
