Por Antonio Archangelo
Hoje, o Brasil acordou com a marca de 137 anos da assinatura da Lei Áurea. Em 13 de maio de 1888, Isabel de Bragança, princesa imperial, assinou o documento que colocava fim legal à escravidão no país. O gesto foi breve, frio, sem festa para quem mais tinha motivos para celebrar. Nas ruas, houve comemorações de resistência. Mas nos salões do poder, nenhuma intenção real de reparação. A abolição veio sem terra, sem escola, sem casa e sem plano. Os grilhões caíram das pernas, mas os muros se ergueram nas cidades, nas escolas, nas palavras, nas balas.
Fomos o último país do Ocidente a abolir a escravidão. Tão tardiamente quanto superficialmente. Enquanto o Haiti aboliu com revolução e redistribuição de terras, e os EUA ao menos cogitaram “40 acres e uma mula”, o Brasil preferiu a assinatura sem consequência, o abandono protocolado. A elite permaneceu rica, branca e latifundiária — a negritude, empurrada às margens da nova República em formação, foi tratada como resíduo incômodo de um passado que ninguém queria discutir.
E ainda hoje não queremos. O país que diz não ter racismo tem uma polícia que mata um jovem negro a cada quatro horas. Tem escolas onde a repetência é maior para crianças pretas e pardas, como mostram os estudos de Fúlvia Rosemberg (1987-1997, apud SANTOS; PINTO; CHIRINÉA, 2018). Tem universidades onde a presença negra ainda incomoda. Tem bairros inteiros de pretos e pardos sem saneamento, transporte decente ou vagas em creche. Mas tem quem diga que cotas são privilégios. Privilégio é nascer branco no Brasil.
Vivemos a contradição do racismo sem racistas. A tal democracia racial não passa de mito fundacional. “Se todos somos mestiços”, dizem, “então o racismo não existe”. Mas existe, e se esconde justamente aí: na tentativa de apagar, diluir, negar o que está escancarado. Como lembra Lia Vainer Schucman (2010), o racismo no Brasil é sutil, disfarçado de cordialidade. Está no “marrom”, no “moreno claro”, na ausência de negros nos espaços de decisão. Está na ideia de que “eles não se esforçam”, no fetiche do “cabelo ruim”, no estigma de quem “não tem berço”.
A escola, longe de ser o antídoto, tem sido muitas vezes o vetor do epistemicídio. A palavra é dura, e precisa ser. Os saberes africanos e indígenas foram sistematicamente apagados dos currículos, dos livros e das salas de aula. A Lei 10.639/03, que determina o ensino da história e cultura afro-brasileira, é frequentemente ignorada, ou tratada como “tema de novembro” (SANTOS; PINTO; CHIRINÉA, 2018). Enquanto isso, seguimos educando crianças negras a se sentirem estranhas, inferiores, erradas — como se o problema fosse delas, e não do modelo.
É nesse cenário que as ações afirmativas se tornam não apenas necessárias, mas urgentes. Como explicam Clapp Salvador, Heringer e Barbosa de Oliveira (2014), elas surgem da pressão dos movimentos sociais — o movimento negro, o feminismo, o movimento LGBTQIA+ — e enfrentam o incômodo da elite que teme perder o que nunca foi direito exclusivo. As cotas raciais, criticadas por muitos como “racialização forçada”, são, ao contrário, um passo para a desracialização do privilégio branco, como lembra Silvério (2003). São reparação mínima por uma dívida impagável.
As desigualdades no Brasil têm cor. A pobreza tem cor. O desemprego, a morte precoce, o analfabetismo funcional, tudo isso tem cor. E não reconhecer isso é sustentar a engrenagem do racismo estrutural. A cada 13 de maio, tentam nos convencer de que a escravidão acabou. Mas quem olha para as favelas, para os presídios, para os dados, sabe: a abolição foi só um início interrompido.
O fim da jornada “6 por 1” e o reajuste do salário mínimo são vitórias importantes. Mas não bastam. Ainda estamos longe de uma democracia racial — aliás, ainda estamos longe de uma democracia. A luta segue porque a abolição, aquela verdadeira, ainda está por vir.
Referências
- BRASIL. Ministério da Educação. Educação antirracista: caminhos abertos pela Lei Federal nº 10.639/03. Brasília: MEC/SECAD, 2005.
- CLAPP SALVADOR, A.; RODRIGUES HERINGER, R.; BARBOSA DE OLIVEIRA, A. J. Políticas de ação afirmativa: direito e reconhecimento. O Social em Questão, Rio de Janeiro: PUC-Rio, n. 32, jul./dez. 2014.
- GOMES, Nilma Lino. Alguns termos e conceitos presentes no debate sobre relações raciais no Brasil. In: BRASIL, MEC/SECAD, 2005.
- MUNANGA, Kabengele. Uma abordagem conceitual das noções de raça, racismo, identidade e etnia. PENESB, 2003.
- SANTOS, Elisabete Figueroa dos; PINTO, Eliane Aparecida Toledo; CHIRINÉA, Andréia Melanda. A Lei n. 10.639/03 e o Epistemicídio: relações e embates. Educação & Realidade, Porto Alegre, v. 43, n. 3, 2018.
- SCHUCMAN, Lia Vainer. Racismo e antirracismo: a categoria raça em questão. Revista Psicologia Política, vol. 10, n. 19, 2010.
- SILVÉRIO, Valter Roberto. O papel das ações afirmativas em contextos racializados: algumas anotações sobre o debate brasileiro. In: GONÇALVES, P. B.; SILVÉRIO, V. R. (org.). Educação e ações afirmativas. Brasília: Inep, 2003.

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