O Retorno dos Mortos-Vivos: Cultura, Barbárie e o Paradoxo da Democracia Brasileira

“Todo documento de cultura é também um documento de barbárie.”
— Walter Benjamin

No Brasil, o passado não passa. Ele ronda o presente como um morto-vivo — não metaforicamente, mas politicamente. A ditadura, que deveria ter sido sepultada com memória, verdade e justiça, foi apenas maquiada por pactos de conveniência e uma transição tutelada. E como alertou Walter Benjamin, todo gesto de civilização carrega, em suas entrelinhas, a barbárie que o antecede e sustenta.

Mas a verdade é ainda mais incômoda: a barbárie não está no passado — ela forjou o próprio nascimento da República. O Brasil nasceu da violência. A República foi proclamada não por clamor popular, mas por um golpe militar. Desde então, nossa história é uma linha torta traçada por quarteladas, rupturas constitucionais, suicídios forjados, caçadas políticas e golpes parlamentares travestidos de legalidade.

Vivemos entre solavancos e espasmos democráticos, enquanto uma elite política e militar — colonizada culturalmente e entorpecida pelo fetiche da autoridade — conduz o país à submissão internacional, especialmente aos Estados Unidos. A soberania nacional é ridicularizada. As Forças Armadas, que deveriam proteger a Constituição, preferem bajular o capital estrangeiro e desdenhar das instituições que sustentam a república civil.

É nesse cenário que o bolsonarismo ganhou corpo — e o mais grave: não como aberração, mas como continuidade da lógica autoritária que nunca morreu. O golpe fracassado de 8 de janeiro de 2023, a conspiração para assassinar o presidente eleito Lula e o envolvimento de altas patentes militares não são desvios — são sintomas.

E ainda assim, há quem se recuse a dar nome aos bois.

Analistas apressados e editorialistas acovardados insistem na farsa de que “o lulopetismo e o bolsonarismo se alimentam mutuamente”, como se fossem faces do mesmo veneno. Essa falsa equivalência é não só intelectualmente desonesta, como moralmente perigosa. Um defendeu torturadores, ameaçou o Supremo, atacou eleições, promoveu a necropolítica e sabotou o Estado de bem-estar social. O outro é resultado de eleições livres e — com todos os limites e críticas cabíveis — defendeu o pacto constitucional, os direitos sociais e a soberania nacional.

Dizer que ambos são “extremos” é esquecer o que é fascismo. É dizer que uma vítima e seu algoz se alimentam um do outro. É relativizar a barbárie em nome de uma neutralidade covarde.

E mais: quem se diz democrata, mas silenciou diante dos arroubos militaristas do bolsonarismo — ou pior, os legitimou — carrega parte do ônus dessa história. A elite política que fingiu normalidade diante de fardas no governo; os liberais que celebraram Paulo Guedes enquanto o Planalto promovia destruição institucional; os partidos que negociaram cargos com quem cuspia na Constituição — todos esses também escolheram a barbárie.

Caminhamos para mais uma eleição decisiva. E o paradoxo é gritante: Lula, o sobrevivente do golpe, pode ser reeleito. Mas o bolsonarismo — esse espectro zumbi que parece imortal — continua forte, vivo, com capilaridade em igrejas, quartéis, redes sociais e orçamentos públicos. 2026 será mais do que uma eleição. Será um julgamento sobre o que somos e o que pretendemos ser. Continuaremos sendo um país fundado no autoritarismo e na submissão? Ou seremos capazes de enterrar os mortos-vivos que há mais de um século impedem o Brasil de respirar soberania, justiça e dignidade?

Walter Benjamin nos advertiu que toda cultura carrega sua barbárie. Mas também nos disse, em outro de seus fragmentos, que a revolução é o freio de emergência diante do trem da catástrofe. O Brasil está de novo nesse ponto. A máquina segue em alta velocidade, com os mortos no comando.

A democracia — frágil, cambaleante, sabotada por dentro — ainda respira. Mas não por muito tempo, se não dermos nome aos bois, se não desvelarmos os pactos podres que sustentam essa república militarizada, desigual e submissa.

É hora de parar o trem. Ou de aceitar o abismo como destino.


📚 Sugestões de leitura

ARNS, Dom Paulo Evaristo et al. Brasil: nunca mais. 37. ed. Petrópolis: Vozes, 2013.

BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. 8. ed. São Paulo: Brasiliense, 2012. (Obras escolhidas, v. 1).

CARVALHO, José Murilo de. Forças armadas e política no Brasil. Rio de Janeiro: Zahar, 2005.

FAUSTO, Boris. História do Brasil. 13. ed. São Paulo: EdUSP, 2013.

GAGNEBIN, Jeanne Marie. Walter Benjamin: os cacos da história. 2. ed. São Paulo: Editora 34, 1999.

MBEMBE, Achille. Necropolítica. São Paulo: n-1 Edições, 2018.

MIGUEL, Luis Felipe. Democracia na periferia do capitalismo: crise e futuro da política no Brasil. São Paulo: Boitempo, 2022.

PINHEIRO, Paulo Sérgio. Autoritarismo e democracia no Brasil: o legado da ditadura militar. São Paulo: Paz e Terra, 1994.

QUINTANEIRO, Tânia; BARROS, José D’Assunção; FARIAS, Juliana. Sociologia para o ensino médio. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2007.

RIDENTI, Marcelo. Em busca do povo brasileiro: artistas da esquerda e intelectuais no Brasil. Rio de Janeiro: Record, 2000.

ROCHA, Camila. Menos Marx, mais Mises: o liberalismo e a nova direita no Brasil. São Paulo: Todavia, 2021.

SAFATLE, Vladimir. A coragem da verdade: cartas filosóficas sobre a resistência. São Paulo: Três Estrelas, 2021.

SCHWARCZ, Lilia Moritz; STARLING, Heloisa Murgel. Brasil: uma biografia. São Paulo: Companhia das Letras, 2015.

SOARES, Luiz Eduardo. Desmilitarizar: segurança pública e direitos humanos. São Paulo: Boitempo, 2019.

VIEIRA, Oscar. Brasil submisso: da soberania ao entreguismo. São Paulo: Elefante, 2022.


📄 Referências complementares

AGÊNCIA PÚBLICA. Dossiê 8 de janeiro: militares, civis e o plano golpista. Disponível em: https://apublica.org. Acesso em: 05 jun. 2025.

BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Ações Penais e Inquéritos sobre os atos golpistas de 8 de janeiro de 2023. Disponível em: https://www.stf.jus.br. Acesso em: 05 jun. 2025.

COMISSÃO ARNS. Boletim sobre a militarização da política brasileira. São Paulo, 2023. Disponível em: https://comissaoarns.org. Acesso em: 05 jun. 2025.

PIAUÍ. A anatomia de um golpe: especial investigativo sobre o bolsonarismo e o 8 de janeiro. Revista Piauí, São Paulo, 2023. Disponível em: https://piaui.folha.uol.com.br. Acesso em: 05 jun. 2025.

THE INTERCEPT BRASIL. O plano do golpe: série de reportagens sobre conspiração militar contra a democracia. 2023. Disponível em: https://theintercept.com/brasil. Acesso em: 05 jun. 2025.

Antonio Archangelo é professor, especialista em Gestão Pública, Direito Público e Auditoria em Saúde.

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