Estudo alerta que importar argumentos jurídicos dos EUA pode enfraquecer as cotas raciais no Brasil

Em meio ao crescimento de narrativas que questionam a legitimidade das cotas raciais no Brasil sob o manto da “isonomia” e da “neutralidade”, um estudo publicado por Wagner Graff Vieira e Maurício Zanotelli lança um alerta contundente: o uso acrítico do direito comparado com os Estados Unidos pode minar, por dentro, a política de ações afirmativas brasileira.

No artigo “Cotas raciais em concursos públicos: uma análise de direito comparado entre Brasil e Estados Unidos”, os autores analisam as bases constitucionais e históricas das ações afirmativas nos dois países e mostram que, apesar de enfrentarem desigualdades raciais profundas, Brasil e EUA seguem lógicas jurídicas distintas e até antagônicas.

Nos EUA, predomina a ideia de colorblindness — o mito da neutralidade racial — que tem levado a Suprema Corte a barrar políticas de ação afirmativa explícita, como no caso recente que proibiu o uso de critérios raciais no acesso à universidade. Já no Brasil, o reconhecimento do racismo estrutural está positivado na Constituição e reafirmado em decisões do STF, como a que julgou legítimas as cotas na Universidade de Brasília (ADPF 186).

O estudo destaca que, se argumentos do modelo norte-americano — como o de “discriminação reversa” — forem aplicados ao contexto brasileiro, corre-se o risco de deslegitimar a base normativa construída ao longo de décadas por movimentos negros, juristas e instituições democráticas.

“Importar categorias jurídicas de um país cuja matriz constitucional se organiza em torno da abstração racial é ignorar que o Brasil tem uma história específica de negação e silenciamento do racismo”, afirmam os autores.

Além disso, o artigo aponta que o critério de autodeclaração adotado no Brasil, embora enfrentando desafios de verificação e fraudes, representa uma ruptura com o negacionismo racial que imperou nas políticas públicas durante o século XX. Nos concursos públicos, a Lei nº 12.990/2014 é uma conquista política, e não apenas um mecanismo administrativo de inclusão.

A pesquisa propõe, portanto, um uso crítico e emancipador do direito comparado, que não reforce lógicas colonizadas ou descontextualizadas. Para os autores, o verdadeiro risco está em usar a experiência norte-americana como argumento para “desracializar” o debate brasileiro — apagando justamente aquilo que as cotas buscam enfrentar: o racismo estrutural do Estado.


Referência
VIEIRA, Wagner Graff; ZANOTELLI, Maurício. Cotas raciais em concursos públicos: uma análise de direito comparado entre Brasil e Estados Unidos. [s.l.]: [s.n.], 2023.

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