Entre o espelho e o cárcere: Poesias Nonsense supera 91 mil leituras em sua fase mais introspectiva

O livro digital Poesias Nonsense, de Antonio Archangelo, ultrapassou 91.062 acessos — um número extraordinário para uma obra de poesia experimental publicada originalmente em ambiente digital e mantida, desde 1998, como projeto vivo e em mutação.

O feito consagra não apenas um autor, mas um modo de escrever e pensar: a poética semânticofonomórfica antropofágica inovadora, concebida por Archangelo como um laboratório linguístico de resistência e reflexão crítica. Mais do que versos, trata-se de uma filosofia da linguagem — um conjunto de experimentos que atravessam fonética, filosofia, política e psicanálise, sob o signo da ironia e da metamorfose.


O espelho da modernidade

Em sua fase mais recente, o autor reuniu três poemas — Liquidifeito, Solidão e Autocárcere — que formam uma espécie de tríptico psíquico: uma travessia do eu através da dissolução, da aridez e do cárcere interior. Neles, o espelho — metáfora central desde os primeiros Poemas Nonsense — ganha densidade filosófica: ele já não reflete a imagem, mas a consciência em colapso.

O eu poético, em vez de se contemplar, se interroga.
A vaidade cede espaço à lucidez; o reflexo, à autocrítica; o verso, à confissão.
O resultado é o que Archangelo define como “narcisismo reflexivo” — uma estética em que o olhar sobre si é, simultaneamente, autópsia e sobrevivência.


O espelho líquido — Liquidifeito

“Eu, filho da modernidade líquida, sofro — desde a epigênese da infância — a ausência da solidez.”

O poema é uma síntese da fragilidade do sujeito contemporâneo. Bauman fornece o pano de fundo teórico: as relações escorrem, o afeto evapora, a identidade se dissolve.
Mas Archangelo faz algo além da crítica — ele personifica a liquidez. O eu poético se reconhece como resíduo da modernidade e, ainda assim, persiste: “esparramo meu DNA em fragmentos de silício e saudade.”

Aqui, o narcisismo não é o da selfie, mas o da ruína — o amor por um eu que se desfaz diante do espelho digital.


O espelho árido — Sol

“Solitário, heremita errante / soltando em areia do deserto…”

Depois da liquidez, vem a secura.
O deserto de Solidão é o avesso do espelho: lugar onde o eu se desfaz em eco.
É o estágio da consciência sem resposta, da espera que não se cumpre, do silêncio que já não consola.
O poema atinge um estado de rarefação ontológica — um eu que busca o outro e descobre que o outro é miragem.

Se Liquidifeito chorava o derretimento da imagem, Solidão chora a ausência do reflexo.
O sujeito passa a habitar o próprio vazio, em estado de vigília existencial.


O espelho cativo — Autocárcere

“Até descobrir que andas preso / dentro das celas da minha intuição.”

Em Autocárcere, o espelho retorna — mas agora, com grades.
O eu se vê prisioneiro do próprio pensamento: a consciência vigia o desejo, o desejo vigia o corpo, e o corpo vigia o amor.
O narcisismo reflexivo alcança aqui seu ponto máximo: o poeta descobre que o espelho é a cela.

Há ecos de Foucault: o sujeito moderno é prisioneiro do olhar disciplinar que internalizou.
E há ressonâncias de Guattari: a subjetividade se torna máquina de controle.
Mas Archangelo não lamenta — ele observa.
O cárcere é também revelação: o olhar que aprisiona é o mesmo que esclarece.


25 anos de uma poética antropofágica

Desde os primeiros textos de Poesias Nonsense, Archangelo vem praticando uma antropofagia da linguagem: devora formas, estilos e discursos para produzir uma escrita entre o filosófico e o onírico.
Os poemas semânticofonomórficos não se limitam a inovar na forma — eles tensionam o próprio conceito de poesia, transformando-a em campo de experiência psíquica.

Os 91.062 acessos ao livro digital são mais do que um número: são evidência de que há público para o inconformismo, para a poesia que se arrisca, que desconstrói, que pensa.
Num mundo saturado de discursos prontos, a poética de Archangelo resiste justamente porque não quer agradar — quer provocar.


5. O espelho ético

A trilogia recente e o conjunto dos Poemas Nonsense configuram o que se pode chamar de estética do autoconhecimento trágico: o poeta olha para si e encontra o mundo — um mundo esfacelado, líquido, árido, encarcerado. O espelho não devolve a beleza, devolve a consciência da própria deformação.

Em 25 anos de percurso, Archangelo construiu um espelho ético — um espaço de reflexão onde a linguagem se dobra sobre si para questionar o humano. O resultado é uma das obras mais singulares e coerentes da literatura digital brasileira: um projeto que atravessa gerações, formatos e dispositivos sem perder sua radicalidade. E agora une pinturas criadas com uso de Inteligência Artifical com base na leitura dos poemas confeccionados, o resultado é um mosaico de cores e sentimentos.


Referências

ARCHANGELO, Antonio. Poemas Semânticofonomórficos Antropofágicos Inovadores. Série Poesias Nonsense (1998–2025). Acesso: https://poesiasnonsense.blogspot.com/
BAUMAN, Zygmunt. Amor Líquido. Rio de Janeiro: Zahar, 2004.
FOUCAULT, Michel. O Cuidado de Si. Rio de Janeiro: Graal, 2006.
GUATTARI, Félix; DELEUZE, Gilles. O Anti-Édipo. São Paulo: Editora 34, 2010.
LACAN, Jacques. Escritos. Rio de Janeiro: Zahar, 1998.


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